quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Carlos Paredes – Guitarra Portuguesa (1967)


O primeiro álbum de Carlos Paredes, Guitarra Portuguesa, disputa a condição de obra maior com o tomo seguinte, Movimento Perpétuo. Há um argumento forte para o primeiro ganhar o braço-de-ferro. Chama-se “Canção Verdes Anos”.

Não poderia haver nome mais apropriado para o primeiro disco de Carlos Paredes do que Guitarra Portuguesa, de tal forma é impossível, no seu caso, separar quem toca do que é tocado. A sua própria postura em palco – a cabeça curvada sobre a guitarra, carne e madeira entrelaçados – traduz bem essa relação fusional. Por isso, Paredes nunca se separava da sua querida guitarra. Uma vez, num aeroporto, a guitarra perdeu-se, não havia meio de encontrá-la. Paredes desabafará: “cheguei a pensar em matar-me”…

Sem a guitarra Paredes é um mistério, escondendo-se por detrás da sua reserva e timidez olímpicas. Um exemplo: foi preso pela PIDE em 1958 – um ano e meio nos calabouços pelo crime de ser comunista – mas nunca partilhou com ninguém as suas amargas recordações.  Porém, sabemos tudo. A guitarra denuncia. Algumas notas tão dolentes – outras, tão raivosas – escrevem, por si, a sua autobiografia.

Qualquer disco que tenha a guitarra portuguesa no seu centro transborda de portugalidade (quem inventou o nome do instrumento sabia o que estava a fazer). Há qualquer coisa no seu timbre que nos faz sentir em casa, acordando, mesmo nos mais avessos a sentidos patrióticos, uma inesperada ternura pelo que é nosso. O primeiro disco de Paredes vai, porém, mais longe: quem compõe e interpreta assim só pode ser português.

Carlos Paredes e a sua inseparável guitarra portuguesa

Não nos esqueçamos que Paredes é filho e neto de grandes guitarristas coimbrãos, estando toda esta tradição inscrita no seu ADN. O seu pai, Artur Paredes, foi – a par com Edmundo Bettencourt – uma grande figura da geração d’oiro do fado de Coimbra (a dos anos 20 e 30 do século passado). Carlos Paredes nunca teve aulas de guitarra portuguesa, aprendendo apenas vendo o pai a tocar. Ainda em miúdo, vai viver para Lisboa, mas sendo filho do grande renovador da guitarra de Coimbra, foi sempre depositário desta herança musical. Há salpicos coimbrãos por todo o disco mas é em  “Melodia nº 1” e “Melodia nº 2” que este legado é mais evidente.

Outro eco de portugalidade: o folclore da Beira Baixa, como aquele que assoma em “Dança”, festivo e saltitante como um bailarico de aldeia. Sendo um homem da cidade, há também ruralidade nos seus mil dedos (Paredes sempre foi Portugal inteiro).

De uma forma mais subtil, mas porventura mais poderosa, há a presença de Lisboa em Guitarra Portuguesa, a luz prateada, os magotes de gente entornando-se pelas ruas, as gaivotas do Tejo riscando o céu de Lisboa… É o caso do tema mais conhecido do disco, a “Canção Verdes Anos” – roubada à banda-sonora do filme “Verdes Anos”, de Paulo Rocha -, evocando a Lisboa opressiva para os que vêm de fora, captando a angústia do jovem sapateiro vindo da província, um peixe fora de água, acossado e aflito na grande cidade. A “melancolia dourada da Lisboa das grandes avenidas”, para usarmos as próprias palavras do mestre…

Fotograma do filme “Verdes Anos”, de Paulo Rocha

Se atrás enfatizámos algumas continuidades com tradições já existentes, o que mais sobressai em Guitarra Portuguesa é justamente o oposto: a descontinuidade, o salto para o desconhecido. A sua linguagem é pessoalíssima, inventando toda uma nova gramática para expressar o que nos vai na alma. Se é verdade que Carlos Paredes sentia medo do seu pai – figura austera e dominadora -, construiu a sua voz artística em ruptura com a pesada linhagem familiar. A verdade estética não é negociável.

Aliás, é esse um dos grandes legados de Paredes: emancipar a guitarra portuguesa do fado, explorando as suas possibilidades como instrumento solista, muito para lá dos limites estreitos da canção coimbrã. Em Guitarra Portuguesa os acordes e as progressões têm um travo mais exótico e dissonante. Há imaginação melódica para dar e vender, entrelaçando vários trechos no mesmo tema, com guinadas inesperadas e criativas. O tempo é elástico, moldado como barro, esticado e encurtado a seu belo prazer, enquanto a viola do Fernando Alvim faz das tripas coração para pôr alguma ordem na casa. A música de Guitarra Portuguesa é inclassificável, demasiado sofisticada para ser considerada música popular, demasiado terra-a-terra para ser entendida como música erudita, habitando a solidão das margens, preço elevado – mas justo – para a arte acontecer.

Em Guitarra Portuguesa – e no segundo disco, Movimento Perpétuo – Paredes está no auge do seu virtuosismo. Porém, por mais impressionante que seja a sua agilidade técnica, é a beleza poética das suas composições – e a expressividade da sua interpretação – que tornam Paredes tão singular. Guitarra Portuguesa é só música na superfície. Quando chega a nós, e nos comove, é outra coisa já: talvez poesia, quem sabe, cinema, ou apenas a ribeira cristalina onde nos vemos ao espelho. Dor, saudade, esperança, luz…



 

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