A estreia de Kate Bush no mundo da música deu-se de forma inesperada e bela. The Kick Inside foi o pontapé de saída para outros voos, todos eles intensos e gloriosos.
Parece um conto de fadas, daqueles da Disney, em que uma jovem dos subúrbios de uma grande capital acaba, num ápice, por se tornar rainha do seu tempo. Foi mais ou menos isso que aconteceu na vida de uma menina de dezanove anos chamada Kate Bush. E assim, o mundo passou a conhecer e a amar uma jovenzinha católica que vivia nos arredores de Londres com os seus dois irmãos, mãe e pai.
O que Kate Bush fez, e tal coisa é muito difícil de acontecer, foi trazer na sua bagagem musical um novo estilo, uma nova maneira de fazer canções, assim como tantas outras novidades que começaram a ganhar corpo, materializando-se num disco que ainda hoje transporta uma brisa fresca, doce, inocente e inquietante. Tudo é inquietação em Kate Bush, aliás. Talvez seja essa a essência da arte suprema, aquela coisa indizível que, ao mesmo tempo, nos desassossega e nos delicia. Isso, e uma torrente lírica que nos aparece nas palavras, no piano, nos arranjos que a tímida menina soube mostrar no tempo e no lugar certos.
A ideia que ficou foi a de que ninguém estaria preparado para a receber, embora todos o tenham feito de braços abertos. Em 1978 surge The Kick Inside, o primeiro álbum de uma discografia de exceção, arriscada como poucas, e honesta como quase nenhuma. Kate Bush sempre foi exatamente o que gravou. Nem mais, nem menos.
Kate Bush tornou-se um fenómeno pop mundial num rápido piscar de olhos. Depois das suas demos terem chegado às mãos e aos ouvidos de David Gilmour, e de este ter ficado maravilhado com o potencial que nelas ia, a gravadora EMI acabou por revelar interesse na gravação de um disco, o primeiro da carreira de Kate Bush. Assim se fez The Kick Inside, álbum de delicadas imperfeições e de sublimes e pequenas dramaturgias. A linguagem que Kate Bush trouxe para o universo reinante da música que se fazia em Inglaterra (o rock progressivo era o que de mais clever clever existia) foi, como se disse, muito bem recebida, e para esse aplauso generalizado foram decisivas três canções, “The Saxophone Song”, “The Man With The Child In His Arms” e sobretudo o hino que foi (e ainda é, não tenhamos dúvidas) “Wuthering Heights”, clássico instantâneo e intemporal. Esta última canção, como bem se sabe, foi escrita quando Kate Bush tinha dezoito anos, inspirada no célebre romance de Emily Brontë, e nela encontramos um pouco das aventuras e desventuras de Catherine e Heathcliff, as míticas personagens românticas da obra publicada nos últimos anos da primeira metade do século XIX . No entanto, o disco vive também, e muito, dos encantos (por vezes ingénuos) dos seus outros temas, como o inicial “Moving” (os sons de entrada das baleias são inesquecíveis, assim como a voz de Kate que surge alguns instantes depois), “Strange Phenomena” (que belo refrão!), “Oh To Be In Love” ou o derradeiro “The Kick Inside”. Na verdade, não há um único tema que possamos dizer ser esquecível. Alías, uma das canções ainda não mencionadas (“James And The Cold Gun”), fora a escolha da editora para primeiro single do álbum, mas Kate Bush não permitiu que tal acontecesse, revelando desde logo algo que foi um dos aspetos mais característicos da sua personalidade musical: só fazer o que a sua cabeça ditar. No entanto, o que mais se estranha em todo o disco é a inusitada voz da cantora, tão aguda quanto singular, parecendo querer acentuar, ela própria, por vezes e de forma propositada, essa sua tão particular característica. Ou se gosta, ou haverá sempre na voz de Kate um obstáculo à afeição pela sua arte.
A capa mais conhecida de The Kick Inside (há seis capas oficiais, o que talvez seja algo completamente inédito na história das produções de discos) revela Kate Bush presa a uma espécie de grande papagaio oriental, destacando-se ainda um olho (pupila e íris) de grandes dimensões. As fontes que grafam o nome da artista, assim como o título do álbum, são orientais, e as cores amareladas, alaranjadas e vermelhas da imagem conferem ao conjunto um aspeto claramente insólito. Como é igualmente insólito o seu conteúdo.
Com quase quarenta e cinco anos de existência, podemos afirmar que The Kick Inside não revolucionou o mundo da música. Longe disso. Mas a sua autora terá sido alguém que foi deixando uma sólida marca na arte de compor e de cantar. Que o digam, por exemplo, Björk, Tori Amos, Fiona Apple e até, mais recentemente, Florence Welsh. É, por tudo isto, tempo de escutar de novo The Kick Inside. Verá que nele há motivos para grande satisfação.
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