Resenha: Roger Waters – Is This The Life We Really Want? (2017)
Artist: Roger Waters
Disco: Is This The Life We Really Want?
Data de lançamento: 2 de Junho de 2017
Selo: Columbia
Tempo total: 54:06
Disponível em: CD, LP & Digital
Nas artes, a imitação do passado não é algo novo. Na época do Renascimento, pensava-se que a imitação dos clássicos seria o exercício capaz de trazer aos artistas daquele tempo um grau considerável de originalidade. Tornou-se comum a adaptação de obras antigas, como Iphigénie, de Racine, que era uma tragédia em tudo semelhante à tragédia de Eurípedes. Entre os séculos XVI e XVII, foi comum imitar não apenas as temáticas de obras gregas, mas também títulos de obras e mesmo marcas de estilo do período clássico.
Guardadas as devidas proporções, podemos observar na música pop atual um movimento de revisitação, que também tenta adaptar e recriar o passado em busca de uma originalidade no presente. Há uma onda de bandas e artistas que tentam arqueologicamente recriar a vibração de uma sonoridade dos anos 1960, 70 ou 80, como se suas músicas recentes tivessem sido resgatadas por um Delorean direto do passado e trazidas magicamente para os ouvintes do século XXI. O curioso é que muitos dos artistas que influenciaram as novas gerações estão ainda vivos e em atividade.
Um desses nomes é o britânico Roger Waters, que por muitos anos liderou a mais conhecida instituição do rock progressivo, conhecida como Pink Floyd. Depois de 25 anos sem lançar um disco de inéditas (exceto por ‘Ça Ira’, que costuma não ser incluído na contagem por se tratar de uma ópera), Waters decidiu romper esse hiato. Há alguns anos, lançar um disco tão amarrado à sonoridade dos anos gloriosos do Pink Floyd teria sido uma decisão bastante anacrônica. Mas, dadas as tendências de revival dos dias atuais, o baixista e compositor possivelmente percebeu (talvez aconselhado pelo ilustre produtor Nigel Godrich) que seria um bom momento para apresentar às novas gerações diversos elementos que ele mesmo ajudou a criar.
Em uma primeira audição, ‘Is This The Life We Really Want?’ parece ser o resultado de um processo antropofágico de Waters consigo mesmo. Sua maior inspiração foi o que ele criou (ao lado de Gilmour, Wright e Mason) décadas atrás. Em comentários da internet, fãs conseguiram mapear em diversas nuances quais músicas do Pink Floyd se parecem com as músicas atuais – seja por um baixo ali, um ritmo acolá, um timbre tal, etc.
A começar pela vinheta de diálogos que abre o disco, bem “floydiana” – contudo, se a introdução de “Breathe” em ‘The Dark Side of the Moon’ apresentava um mosaico de vozes falando sobre a loucura, o diálogo de “When We Were Young” se articula de vozes do próprio Roger Waters. Logo surge “Déjà Vu”, que, pelo menos no aspecto melódico e harmônico, faz jus a seu nome: no liquidificador de Waters pareciam estar o violão inicial de “Mother”, mas, sobretudo, a dinâmica crescente e as orquestras de “The Final Cut”. Pela vinheta e faixa de abertura, o compositor já indica que não será um disco com muitas inovações.
Contudo, se sonoramente “Déjà Vu” é lugar comum, sua letra é uma pequena obra prima, em que Waters especula o que faria caso fosse um Deus ou um drone, tudo para concluir que, no fim das contas, nada muda. O recurso de se pensar como um ente divino parece bem pretensioso, mas é interessante como todo o egocentrismo do qual o ex-Floyd fora acusado ao longo dos anos parece ter sido algo sublimado e então transformado em impulso artístico (algo fácil de se notar também na versão filme/concerto de ‘The Wall’, lançada por ele em 2015, em que o baixista aparece sozinho em quase todas as cenas).
Em “The Last Refugee”, Waters parece estar em um cenário bucólico ou paradisíaco, se despedindo de alguém que depois ele revela ser seu filho. Difícil não ouvir as referências de “taking a last look at the sea” e não pensar no menino refugiado sírio encontrado morto em uma praia da Turquia. O vocal, emotivo, vai crescendo junto com os sintetizadores moog cada vez mais intensos, na medida em que descobrimos que a pessoa interagindo com o narrador da canção é alguém próximo – um filho, talvez morto na praia.
“Picture That” é paranoica, com os típicos riffs floydianos carregados de delay, em uma faixa que parece ter saído de ‘Animals’ em timbre e temática. Toda a letra é construída através da imaginação de situações variadas, todas envolvendo idiossincrasias humanas vistas sem muita piedade ou esperança. Waters convida o ouvinte a se ver em outros, sejam pais de crianças atiradoras do Afeganistão, o passageiro de um vôo insano, um pai de família amedrontado, e todos sob a sombra de um “maldito líder sem cérebro” (apenas uma de tantas referências indiretas à Donald Trump, mas que pode servir para nomear qualquer líder inconsequente desde sempre). Em dado momento, a letra se volta para os fãs que filmam um artista em um show, situados na primeira fila – trechos que soarão fortes quando tocados ao vivo – e tudo isso com direito a trocadilhos como “Wish You Were Here in Guantanamo Bay”.
O clima de antes é quebrado com a ternura da faixa seguinte, “Broken Bones”, dando um passo no passado, e perguntando onde foi que a humanidade errou. Entre erros e acertos, toda a diacronia do olhar tem como objetivo chamar a atenção para o presente, concluindo que não se pode corrigir o passado, mas pode-se decidir não ouvir as mentiras e besteiras de déspotas e ditadores.
A faixa título do disco começa com o áudio de um dos típicos discursos cheios de retórica vazia de Donald Trump – que melhor maneira de evidenciar a caricatura “trumpiana” do que incluir a voz do próprio? “Is This The Life We Really Want” é a mais direta declaração de princípios da mensagem de Waters, um fluxo de consciência que traz à tona toda a sua raiva com a apatia das pessoas e o rumo de nossa época. Para ele, todos são culpados, até mesmo as formigas, que surgem não apenas como ponto mais ínfimo de sua lista magoada, mas também como metáfora do humano embotado pelo excesso de TV. “Bird in a Gale” surge como uma “parte 2” dessa faixa, cujo andamento e efeitos sonoros conferem tons cinematográficos à tensão e paranoia que no tema anterior se concentravam mais na parte lírica.
Novamente, quando a panela de pressão chega a seu clímax, músicas mais suaves ajudam a cadenciar a audição, ainda que “The Most Beautiful Girl” seja um tanto quanto amarga ao cantar sobre a mulher que talvez fosse a mais bonita do mundo, friamente morta pelos horrores da guerra. Em seguida, “Smell of Roses” traz ecos sonoros de “Have a Cigar” (de ‘Wish You Were Here’, do Pink Floyd), em uma contundência que certamente contribuiu para ser escolhida como primeiro single do disco. Novamente Waters nos transporta para uma realidade caótica, em que o narrador aconselha o aroma das rosas mais como ironia que como esperança, apenas uma imagem cândida no meio de tantos gritos em volta do “campo dos sonhos”. Um típico lar de classe média surge aqui como algo inóspito, cinza, quase uma antítese do tal “sonho americano”.
“Wait for Her” parece costurar a temática das duas faixas anteriores, trazendo de volta a espera por uma mulher (ainda que essa entidade feminina possa ser pensada como metáfora da vida ou da esperança, por exemplo) e o cheiro das rosas. A raiva e a ironia de antes abrem espaço para um momento mais luminoso, em uma faixa que, sozinha, não teria tanto a oferecer, mas que adquire enorme força na audição do disco como um todo (não foi à toa que os integrantes do Pink Floyd processaram sua gravadora EMI contra a venda particionada de faixas e defendendo o conceito dos discos. Os autores de ‘The Dark Side of The Moon’ conhecem melhor do que ninguém o poder estético de um disco com seus altos e baixos).
“Oceans Apart” e “Part of Me Died” são faixas curtas que parecem extensões naturais de “Wait for Her”, e a impressão é a de que, como final do disco, não conseguem conferir um fechamento digno de todo o universo conceitual e sonoro proposto desde o início. Ao se perguntar sobre a vida que todos queremos, o narrador termina falando de alguém que lhe salvou de uma “vida de arrependimento”, alguém para lhe molhar os pés, trazer um último cigarro, e lhe afastar de toda a dor e apatia do mundo.
É como se, apesar das críticas e dos chamados de luta, no fim Waters deixasse a conclusão em aberto, trazendo a esperança para o âmbito individual, mostrando como é difícil crer em iniciativas coletivas nesse século XXI. No aspecto lírico, o trabalho é tão fiel aos anos gloriosos do Pink Floyd quanto o é também na reconstrução sonora. O que não surge como demérito, uma vez que ‘Is This The Life We Really Want?’ atualiza e revigora o que de melhor Waters produziu. É um trabalho que irá agradar a aqueles que procuram pelas marcas registradas do compositor e músico, pouco preocupado com novidades e ainda sem acreditar em uma salvação para a humanidade.
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FICHA TÉCNICA:
Artista: Roger Waters
Ano: 2017
Álbum: Is This The Life We Really Want?
Gênero: Art Rock, Rock Progressivo
País: England
Integrantes: Roger Waters (voz, violão, baixo), Nigel Godrich (produção, teclados, guitarras, efeitos sonoros, arranjos), Gus Seyffert (guitarras, teclados, baixo), Jonathan Wilson (guitarras, teclados), Roger Joseph Manning, Jr. (teclados), Lee Pardini (teclados), Joey Waronker (bateria), Jessica Wolfe (vocais), Holly Laessig (vocais)
MÚSICAS:
1. When We Were Young 1:38
2. Déjà vu 4:27
3. The Last Refugee 4:12
4. Picture That 6:47
5. Broken Bones 4:57
6. Is This the Life We Really Want? 5:55
7. Bird in a Gale 5:31
8. The Most Beautiful Girl 6:09
9. Smell the Roses 5:15
10. Wait for Her 4:56
11. Oceans Apart 1:07
12. Part of Me Died 3:12
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