sábado, 1 de outubro de 2022

Belle and Sebastian – Dear Catastrophe Waitress (2003)


 

O quinto disco dos Belle and Sebastian, Dear Catastrophe Waitress, transborda de imaginação melódica e de alegria pop.

Os gatos têm sete vidas; o Bowie teve para aí umas nove, o lambão; e os Belle and Sebastian só duas, coitados: a vivida entre 1996 e 2000 – discreta e melancólica, íntima e lo-fi – e a do renascimento no novo milénio: alegre e orelhuda, bailante e precisa. O auge da primeira vida acontece ao segundo disco com a perfeição de If You’re Feeling Sinister, de 1996. Por muito acarinhada que seja esta fase mais sonhadora, o cansaço criativo acaba por chegar. O quarto disco, Fold Your Hands Child, You Walk Like a Peasant, de 2000, é competente mas descaracterizado, bonito mas deslavado.

Não faz mal: fecha-se um ciclo, começa-se outro. A saída de Isobel Campbell e Stuart David da banda, e a mudança de editora – da Jeepster para a Rough Trade – convidam à reinvenção. Os Belle and Sebastian entram no novo milénio com uma estética desbragadamente pop. Para cumprir o seu desígnio, não só convidam pela primeira vez um produtor, como escolhem alguém com altas credenciais na putaria musical. Falamos de Trevor Horn: um dos Buggles de “Video Killed the Radio Star” e o produtor de discos dos ABC, Frankie Goes to Hollywood e demais sucessos da Vidisco. A pop barroca – à Love e Zombies – continua mas agora tudo é mais meticulosamente produzido.

E assim nasce Dear Catastrophe Waitress, de 2002: “popalhudo” mas inspirado, polido mas orgânico, soalheiro nas águas-furtadas mas com esqueletos escondidos no rés-do-chão. Desde If You’re Feeling Sinister que um disco dos Belle and Sebastian não tinha uma taxa tão estupidamente elevada de canções trauteáveis no chuveiro. E quando a essa imaginação melódica se somam tempos rápidos e dançáveis, a zona do córtex responsável pelo prazer pop é inundada pelas mais prazerosas sinapses.

Há uma razão adicional para Dear Catastrophe Waitress ser tão coeso: Stuart volta a ter o quase monopólio criativo. O disco anterior tinha demasiadas vozes e autorias, perdendo em unidade e consistência aquilo que ganhara em espírito democrático. Dear Catastrophe Waitress regressa em boa hora ao despotismo iluminado: só duas canções não foram escritas pelo grande líder. “Asleep on a Sunbeam”, da celestial Sarah Martin, é – sejamos justos – encantadora. O mesmo não poderemos dizer de “Roy Walker”, de Stephen Jackson, um casamento contra-natura do Paul-McCartney-fase-Wings com a fumarenta Peggy Lee – única canção falhada de um lote quase perfeito.

A viragem pop deste disco poderia acarretar um risco: soterrar tudo o que há de mais especial na sensibilidade dos Belle and Sebastian – a delicadeza de porcelana, a coragem da vulnerabilidade, o horror à força bruta – por debaixo do profissionalismo da produção e da alegria incontida das suas canções. Mas depressa descobrimos que o seu âmago gentil não só não foi destruído, como foi ampliado pela sua felicidade quase infantil. Sempre houve uma ideia de pureza da infância – e da adolescência – nos Belle and Sebastian e a leveza brincalhona de Dear Catastrophe Waitress aprofunda, estamos em crer, essa busca pela inocência roubada.

As letras são inteligentes e espirituosas mas menos literatas – na senda, talvez, de levar a magia a mais gente. O velho truque de contrastar melodias divertidas com temas pesados é usado em abundância. O tema-título provoca-nos um desses curtos-circuito mentais, a música marchando com determinação, enquanto as palavras tropeçam na empregada de café desajeitada, uma espécie de Luísa-sobe-a-calçada-lá-do-sítio, carregando o peso do mundo nos seus frágeis ombros, e, às vezes, o peso de uma lata de Coca-Cola na pinha, que a vida não tem sido generosa para a nossa desastrada lutadora.

E para quem tem nostalgia pelos Belle and Sebastian de primeira geração, sobram por aqui alguns ilhéus de melancolia pura, como a balada acústica “Lord Anthony”, velveteana nas texturas, morrisseana no imaginário: Anthony é um puto demasiado inteligente e excêntrico para não ser… violentamente espancado pelos colegas…

Dear Catastrophe Waitress tem um travo retro forte, com sopros à Stax Records e guitarras gémeas à Thin Lizzy (que delícia é “I’m a Cuckoo”!), mas a identidade das canções de Murdoch é tão forte que raramente cai no pastiche (o último tema, “Stay Loose”, é uma excepção, roubando demasiado aos Madness e a Costello).

Meretíssimo juiz, a alegria e imaginação pop do arguido, com letras espertas e humanas, cheias de humor negro e compaixão, requerem uma decisão final e derradeira. Vossa Senhoria, o veredicto só pode ser um: um disco criminosamente subestimado, que é, afinal, um dos pontos mais altos dos Belle and Sebastian. Ide ouvi-lo, que só vos fará bem…


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