A estreia dos Booker T. & the M.G.s, Green Onions, não é só um grande disco de southern soul instrumental. É a Stax a encontrar uma identidade, o chamado Memphis Sound.
No início dos anos 60, em Memphis, a Stax ainda andava perdida, às apalpadelas no escuro, sem um rumo estético definido. Um feliz acidente, no Verão de 1961, iria dar-lhe um mapa e uma direcção. É essa história bonita que queremos contar.
Era um domingo à tarde, e quatro músicos de sessão – que se conheciam, mas nunca tinham tocado todos juntos – aguardavam a chegada de Billy Lee Riley – um obscuro artista rockabilly da Sun Records – para gravar um jingle para a rádio. Acontece que Riley nunca chegou. Já que ali estavam, decidiram divertir-se um bocado. Booker T. começou a tocar uns riffs de blues no seu órgão Hammond, e logo Steve Cropper, Al Jackson Jr. e Lewie Steinberg improvisaram por cima. A alquimia colectiva fora incrível. Mal sabiam eles que Jim Stewart – fundador da Stax e produtor de serviço – havia gravado o instrumental. Reproduziu a fita, e clamou, eufórico: isto é um single! Ainda meio abananados, os músicos concordaram com o veredicto. Ao blues dolente chamaram “Behave Yourself”.
Até que Stewart se lembrou do óbvio: ainda não havia lado B… Não faz mal: Booker T. tinha outro riff gingão na manga e, sem mais delongas, começaram a gravar outro tema instrumental. Acabara de nascer o mítico “Green Onions”.
Faltava ainda um pequeno detalhe: era preciso dar um nome à banda. Booker T. deveria figurar, porque o seu Hammond era o principal timbre, e porque… soava bem. Os seus “anexos” foram baptizados de M.G.s, como o automóvel. A icónica banda Booker T. & the M.G.s tinha a sua certidão de nascimento passada.
Entusiasmado, Steve Cropper rumou logo à Sun Records, pedindo ao seu amigo Scotty Moore – o guitarrista do Elvis – para transformar a fita em vinil. Aproveitando o embalo, palmilhou centenas de quilómetros para levar o single a vários rádios R&B da região. Os DJs depressa se aperceberam que o lado B, o groovy “Green Onions”, despertara muito mais interesse, entupindo as linhas com uma enxurrada de telefonemas. Quando se reeditou o single, “Green Onions” foi promovido para lado A, tornando-se um hit a nível nacional: primeiro lugar na parada R&B, terceiro lugar nos charts pop.
Capitalizando o sucesso do single “Green Onions”, gravou-se um longa-duração com o mesmo nome, o primeiro LP com o selo da Stax. Estelle Axton – que fundou a Stax a meias com o irmão Stewart – foi decisiva na escolha das músicas. Axton não era só apaixonada pelo R&B, era também uma profunda conhecedora, daí que tenha recaído sobre si a tarefa de dinamizar a loja de discos da Stax. A Satellite Records Store era um ponto de encontro e descoberta, o coração da Stax. Era Axton que, em primeira mão, mostrava aos putos do bairro os novos sucessos. Fora Axton que recomendara aos Booker T. muitos dos temas de Green Onions, como “I Got a Woman”, do Ray Charles, e “Twist and Shout”, dos Isley Brothers, entre muitas outras pérolas.
O álbum, todo instrumental, marca o nascimento do chamado Memphis Sound: groovy e simples, autêntico e rude – como a poeira do Tennessee. No coração de tudo está a bateria de Al. Jackson Jr., funky e rigorosa, marcando o tempo sincopado com uma precisão absoluta, e ai do colega que se atrevesse a fugir da marcação, levaria logo com uma baqueta na pinha. Que o diga o baixo de Lewie Steinberg, sempre entrelaçado no balanço de Jackson, irmãos gémeos do funk antes do funk. O guitarrista Steve Cropper, o branco mais negro de Memphis, faz uma síntese primorosa entre o country e o R&B, cujos licks saborosos são um dos ingredientes centrais do chamado southern soul. Sendo na sua essência uma guitarra-ritmo, a natureza instrumental de Green Onions obriga-o a sair da sua zona de conforto, oferecendo-nos solos concisos e elegantes. Last but not the least, vem Booker T., o líder da banda, fazendo o seu órgão Hammond soar orgânico como uma voz humana, espiritual como uma missa negra, sincero como uma banda doo-wop de esquina…
No início dos anos 60, Memphis era uma cidade abjectamente segregada. Nesse sentido, a Stax era um oásis, onde a cor da pele não era um critério para nada, só interessava o talento, o groove e a alma. Os Booker T. & the M.G.s eram apenas quatro bons amigos, com uma cumplicidade musical invulgar. Mas não era assim que a América racista os via, indignando-se com o facto de músicos com diferentes cores de pele partilharem o mesmo palco. Em Memphis, os quatro amigos não podiam fazer coisas tão simples como jantarem no mesmo restaurante. Só dentro das portas da Stax é que a estupidez do preconceito desaparecia…
A química encontrada entre os quatro foi tão especial, que a partir daí passaram a ser a “banda da casa”, fazendo a cama sonora dos discos gravados na Stax pelos anos 60 adentro (Otis Redding, Sam & Dave e Wilson Pickett foram alguns dos privilegiados). Foi essa constância nos “bastidores” que deu uma identidade fortíssima ao som da Stax, imediatamente reconhecível aos primeiros segundos. Se a assinatura estética da Stax é única – rude e funky, austera e “negra” -, e totalmente distinta da “rival” Motown – polida e pop, sofisticada e “esbranquiçada” -, é porque era essa a sensibilidade que os Booker T. e os M.G.s imprimiam na sombra. E tudo nascido de um acidente. Os caminhos do Senhor são insondáveis…
Sem comentários:
Enviar um comentário