quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Eiko Ishibashi – Drive My Car Original Soundtrack


A banda sonora de Drive My Car mostra-nos que alguns filmes se veem com os ouvidos. 

Há filmes que se veem com os ouvidos, de tão boa que é a sua banda sonora. Assim de repente, lembro-me do paradigmático Cinema Paradiso, que, como qualquer pessoa sabe (ou devia saber), beneficiou da mestria do signori Ennio Morricone: se escutar os temas que surgem ao longo das cenas, consigo recriar as cenas principais dessa película. Outros filmes são incríveis, pois dispõem de uma banda sonora que «rouba» canções a uma série de artistas e bandas diferentes – como Marie Antoinette (em que a música escolhida representa exemplarmente os sentimentos dos adolescentes), The Eternal Sunshine Of The Spotless Mind (no qual as composições de Jon Brion e os temas de Electric Light Orchestra e Beck, por exemplo, expressam simultaneamente o excitamento e o desespero do amor) e The Life Aquatic With Steve Zissou (que mostrou às salas de cinema o casamento perfeito entre a doçura de Seu Jorge e a excentricidade de David Bowie). E há filmes, também incríveis, que não dependem de temas pop executados por nomes sonantes – necessitam apenas da criatividade de hábeis compositores como Vangelis (o som é fulcral em Blade Runner), Hans Zimmer (estudou pelos apontamentos de Vangelis…), John Williams (a música que acompanha Catch Me If You Can copia o protagonista, sendo atrevida e cheia de manha) e Joe Hisaishi (cujos filmes transformam as crianças em adultos sábios). 

A escolha de alguns dos meus filmes preferidos depende, sem surpresa para o leitor, das suas bandas sonoras, e a lista das películas que preenchem o meu top está em constante crescimento. Um dos últimos filmes que entrou nessa tabela é Drive My Car, o filme dirigido por Ryûsuke Hamaguchi e baseado no conto com o mesmo título do eterno amante de música, Haruki Murakami, que venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional, na cerimónia que acabou por ficar conhecida pela malograda estalada que Will Smith ofereceu a Chris Rock – enfim. 

soundtrack de Drive My Car foi lançada muito antes do filme estrear nas salas de cinema portuguesas. Inicialmente, escutei os 10 temas que compõem a banda sonora sem conhecer a trama da película, e criei a minha própria história, dentro da minha cabeça (apenas li «Homens Sem Mulheres», o livro no qual o conto «Drive My Car» se insere, umas semanas depois). Durante uma dúzia de dias, ouvi sem parar as músicas do filme, e dei por mim a pensar há filmes que se veem com os ouvidos. Mais tarde, já depois de ter visto a longa-metragem, concluí que Drive My Car entra na exclusiva categoria reservada aos grandes trabalhos cinematográficos, porque, para além de revelar uma história dura e cruel sobre traição, luto e ética de trabalho (que, só por si, faz por merecer o prémio que arrecadou), faz-se acompanhar por apontamentos musicais magníficos, que são capazes de reforçar a ligação das pessoas sentadas na sala de cinema com o enredo, pois obrigam-nas a refletir sobre as suas próprias existências, que estão no exterior da sala escura, cujo chão está preenchido por restos de pipocas doces ou salgadas.

O filme revela uma história dura e cruel sobre traição, luto e ética de trabalho.

As composições, trabalhadas pela mestre Eiko Ishibashi, diferem muito pouco, quer em termos de título, quer em termos sonoros: todas são extremamente contemplativas, porque assentam num jazz líquido e solto que, não raramente, parece aproximar-se do universo ambient. Ainda que sejam, então, semelhantes, as faixas adaptam-se a momentos específicos do filme, e respeitam os estados de espírito que comandam Drive My Car – a dor e a melancolia, mas também a coragem de que as pessoas necessitam para se libertar das duras memórias do passado. 

A música tem um papel muito importante na obra de Murakami. Por alguma razão, em todos os livros que publica, o autor japonês realiza incontáveis referências a grandes figuras da música que se espalham pelos diversos géneros musicais. Murakami, como qualquer outro japonês que viveu os anos 60, empanca nos The Beatles (daí o nome do filme e do conto e de outras histórias, como «Yesterday»), e é viciado tanto em jazz, como em música clássica. Por isso, Drive My Car é, sem surpresa, um filme que estabelece uma ligação muito profunda com o fenómeno musical, pois beneficia de uma banda sonora verdadeira e transparente que, de certo modo, indicia a trama e o desfecho do filme. 

A história mostra-nos a vida de um ator de teatro desgostoso que, assim que chega a Hiroshima para trabalhar numa peça de Tchékhov («Tio Vanya»), sabe que terá uma motorista que o irá conduzir durante o período de ensaios até à estreia do espetáculo. O carro (por sinal, lindo) é um SAAB 900 Turbo (encarnado no filme e amarelo no livro) que serve como um elo de ligação entre Kafuku, o artista, e Misaki, a condutora, que conversam durante longas viagens de carro entre o teatro, localizado no centro da cidade, e o espaço onde Kafuku reside temporariamente, fora da zona urbana.

O carro (por sinal, lindo) é um SAAB 900 (encarnado no filme e amarelo no livro) que serve como um elo de ligação entre Kafuku, o artista, e Misaki, a condutora,

Acredito que a banda sonora que Eiko Ishibashi realizou  (em conjunto com o produtor Jim O’Rourkevai além do filme, isto é – a qualidade musical é tanta que extravasa os limites da história da película, podendo ser escutada pelo ouvinte durante o dia-a-dia, entre tarefas rotineiras (nomeadamente a conduzir). De certa forma, a música de Drive My Car faz lembrar a banda sonora de um outro grande filme, com o qual partilha algumas semelhanças na hora de retratar a falta de amor e a solidão: Her, de Spike Jonze, cuja banda sonora é da autoria dos Arcade Fire e do compositor Owen Pallett

Drive My Car já está na história do cinema por ter ganho o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2021, no entanto, é provável que, ao longo dos próximos anos e décadas, a película continue a ganhar relevância, porque, não só forma uma homenagem estrondosa à obra de um dos grandes nomes da literatura contemporânea, como apresenta uma banda sonora imaculada, com bom gosto e viciante.


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