A banda sonora de Drive My Car mostra-nos que alguns filmes se veem com os ouvidos.
Há filmes que se veem com os ouvidos, de tão boa que é a sua banda sonora. Assim de repente, lembro-me do paradigmático Cinema Paradiso, que, como qualquer pessoa sabe (ou devia saber), beneficiou da mestria do signori Ennio Morricone: se escutar os temas que surgem ao longo das cenas, consigo recriar as cenas principais dessa película. Outros filmes são incríveis, pois dispõem de uma banda sonora que «rouba» canções a uma série de artistas e bandas diferentes – como Marie Antoinette (em que a música escolhida representa exemplarmente os sentimentos dos adolescentes), The Eternal Sunshine Of The Spotless Mind (no qual as composições de Jon Brion e os temas de Electric Light Orchestra e Beck, por exemplo, expressam simultaneamente o excitamento e o desespero do amor) e The Life Aquatic With Steve Zissou (que mostrou às salas de cinema o casamento perfeito entre a doçura de Seu Jorge e a excentricidade de David Bowie). E há filmes, também incríveis, que não dependem de temas pop executados por nomes sonantes – necessitam apenas da criatividade de hábeis compositores como Vangelis (o som é fulcral em Blade Runner), Hans Zimmer (estudou pelos apontamentos de Vangelis…), John Williams (a música que acompanha Catch Me If You Can copia o protagonista, sendo atrevida e cheia de manha) e Joe Hisaishi (cujos filmes transformam as crianças em adultos sábios).
A escolha de alguns dos meus filmes preferidos depende, sem surpresa para o leitor, das suas bandas sonoras, e a lista das películas que preenchem o meu top está em constante crescimento. Um dos últimos filmes que entrou nessa tabela é Drive My Car, o filme dirigido por Ryûsuke Hamaguchi e baseado no conto com o mesmo título do eterno amante de música, Haruki Murakami, que venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional, na cerimónia que acabou por ficar conhecida pela malograda estalada que Will Smith ofereceu a Chris Rock – enfim.
A soundtrack de Drive My Car foi lançada muito antes do filme estrear nas salas de cinema portuguesas. Inicialmente, escutei os 10 temas que compõem a banda sonora sem conhecer a trama da película, e criei a minha própria história, dentro da minha cabeça (apenas li «Homens Sem Mulheres», o livro no qual o conto «Drive My Car» se insere, umas semanas depois). Durante uma dúzia de dias, ouvi sem parar as músicas do filme, e dei por mim a pensar há filmes que se veem com os ouvidos. Mais tarde, já depois de ter visto a longa-metragem, concluí que Drive My Car entra na exclusiva categoria reservada aos grandes trabalhos cinematográficos, porque, para além de revelar uma história dura e cruel sobre traição, luto e ética de trabalho (que, só por si, faz por merecer o prémio que arrecadou), faz-se acompanhar por apontamentos musicais magníficos, que são capazes de reforçar a ligação das pessoas sentadas na sala de cinema com o enredo, pois obrigam-nas a refletir sobre as suas próprias existências, que estão no exterior da sala escura, cujo chão está preenchido por restos de pipocas doces ou salgadas.
As composições, trabalhadas pela mestre Eiko Ishibashi, diferem muito pouco, quer em termos de título, quer em termos sonoros: todas são extremamente contemplativas, porque assentam num jazz líquido e solto que, não raramente, parece aproximar-se do universo ambient. Ainda que sejam, então, semelhantes, as faixas adaptam-se a momentos específicos do filme, e respeitam os estados de espírito que comandam Drive My Car – a dor e a melancolia, mas também a coragem de que as pessoas necessitam para se libertar das duras memórias do passado.
A música tem um papel muito importante na obra de Murakami. Por alguma razão, em todos os livros que publica, o autor japonês realiza incontáveis referências a grandes figuras da música que se espalham pelos diversos géneros musicais. Murakami, como qualquer outro japonês que viveu os anos 60, empanca nos The Beatles (daí o nome do filme e do conto e de outras histórias, como «Yesterday»), e é viciado tanto em jazz, como em música clássica. Por isso, Drive My Car é, sem surpresa, um filme que estabelece uma ligação muito profunda com o fenómeno musical, pois beneficia de uma banda sonora verdadeira e transparente que, de certo modo, indicia a trama e o desfecho do filme.
A história mostra-nos a vida de um ator de teatro desgostoso que, assim que chega a Hiroshima para trabalhar numa peça de Tchékhov («Tio Vanya»), sabe que terá uma motorista que o irá conduzir durante o período de ensaios até à estreia do espetáculo. O carro (por sinal, lindo) é um SAAB 900 Turbo (encarnado no filme e amarelo no livro) que serve como um elo de ligação entre Kafuku, o artista, e Misaki, a condutora, que conversam durante longas viagens de carro entre o teatro, localizado no centro da cidade, e o espaço onde Kafuku reside temporariamente, fora da zona urbana.
Acredito que a banda sonora que Eiko Ishibashi realizou (em conjunto com o produtor Jim O’Rourke) vai além do filme, isto é – a qualidade musical é tanta que extravasa os limites da história da película, podendo ser escutada pelo ouvinte durante o dia-a-dia, entre tarefas rotineiras (nomeadamente a conduzir). De certa forma, a música de Drive My Car faz lembrar a banda sonora de um outro grande filme, com o qual partilha algumas semelhanças na hora de retratar a falta de amor e a solidão: Her, de Spike Jonze, cuja banda sonora é da autoria dos Arcade Fire e do compositor Owen Pallett.
Drive My Car já está na história do cinema por ter ganho o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2021, no entanto, é provável que, ao longo dos próximos anos e décadas, a película continue a ganhar relevância, porque, não só forma uma homenagem estrondosa à obra de um dos grandes nomes da literatura contemporânea, como apresenta uma banda sonora imaculada, com bom gosto e viciante.
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