Um disco de Sun Ra é sempre um acontecimento, e com as recentes edições de Lanquidity, volta a acontecer magia!
É difícil escrever sobre lendas do tamanho de Sun Ra, sobretudo por sabermos que dizer algo que ainda não tenha sido dito sobre o que representa na história da música, é quase impossível. Por outro lado, também é fácil escrever sobre Sun Ra, uma vez que na sua grandeza há sempre espaço para acrescentar algo mais, mesmo que apenas reforçando certas ideias já batidas através de um qualquer ângulo diferente. Podemos sempre escolher um dos seus imensos álbuns, e só aí há um filão (quase) inesgotável. Foi o que resolvemos fazer. A escolha recaiu sobre Lanquidity, disco de 1978, mas que foi agora sujeito a uma nova e múltipla edição. Há para todos os gostos, desde boxes de vinil com quatro LPs até à mais simples edição dupla em CD. No fundo, o que importa é ouvir esse disco que parecia estar esquecido no tempo, mas que se revela surpreendentemente atual e moderno, talvez pelo facto de Herman Pool Blount não ser deste mundo (nunca foi, até porque veio de Saturno, como bem sabemos) e, por isso, tudo o que fez tem a marca mística da intemporalidade. Mas, mesmo assim, essa medida humana para designar a eternidade fica-lhe aquém, não lhe serve por completo, é manifestamente parca. Por isso, andamos às voltas e voltamos ao princípio: é difícil escrever sobre lendas do tamanho de Sun Ra.
Lanquidity é um disco pouco comum se tivermos em conta a obra do mestre Ra. Foi editado pela Philly Jazz, uma editora quase inexistente, e trouxe algumas surpresas, desde logo pela unidade existente entre as suas cinco faixas. É um disco que nos hipnotiza e que, em vários momentos, pode fazer-nos ter vontade de dançar. Sim, dançar! O seu sentido rítmico é intenso, mas nunca transbordante, nunca se atrevendo a pedir bola de espelhos ou fumo na pista, como é óbvio. Trata-se de um disco de Sun Ra, pelo que os excessos serão sempre permitidos, mas curiosamente não é esse o caso. Em certa medida, é um álbum comedido, bem comportado, a meio caminho entre delicadeza e a vontade (nunca consumada) de mandar essa amável cortesia às favas. Por vezes, enquanto o ouvimos, era o que desejaríamos que acontecesse, mas acabamos satisfeitos por isso não se concretizar. Na ameaça, como se sabe, pode estar o ganho.
O título da última faixa – “There Are Other Worlds (They Have Not Told You Of)” – talvez nos ajude a explicar todas as diferenças entre este disco e tantos outros do próprio Sun Ra. O que nele se ouve é pouco frequente, incomum, daí o título do quinto tema poder ser, ao mesmo tempo, um aviso e a declaração de uma evidência. A fusão entre free jazz, funk e r&b nota-se de forma considerável em quase todos os momentos de Lanquidity. “Where Pathways Meet”, “That’s How I Feel” e “Twin Stars of Thence” são exemplos perfeitos daquilo que afirmamos. Muito se deve às teclas tocadas pelo próprio Sun Ra (órgão, sintetizador, piano, mini moog, fender rhodes), mas também ao poderoso baixo de Richard Williams e às guitarras (e há dois guitarristas presentes no álbum, coisa bastante invulgar na Arkestra de Sun Ra) de Disco Kid e Dale Williams. Todos enormes, tremendos, ao longo dos quarenta e três minutos e trinta e três segundos da edição original. Outro aspeto interessante é a produção bastante cuidada de Lanquidity, algo que nem sempre ocupava o centro das atenções e das exigências de Ra, esse “deus egípcio do sol” tornado poeta, filósofo, músico e tudo o que mais se possa pensar e imaginar, incluindo ser pioneiro do afrofuturismo, por exemplo.
Lanquidity é um prato cheio, uma maravilha que convém saber aproveitar no inesgotável cardápio de Sun Ra. Agora que as noites começam a ficar estreladas, ouça-o tentando encontrar nelas uma que brilhe intensamente e que seja, quiçá?, a regente de toda essa linguagem cósmica que nos distancia e separa de nós mesmos quando ouvimos música. Talvez nessa estranha cosmometria humana e musical esteja o segredo de tudo o que foi, é e será Sun Ra. Mas não é fácil escrever sobre Sun Ra, embora também não seja difícil fazê-lo.
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