A Preto e Branco é uma terna e quente homenagem de Fausto a África, que foi a sua primeira casa.
África nunca esteve ausente da obra de Fausto Bordalo Dias. Nem poderia, uma vez que África, especificamente Angola, foi a sua casa durante as duas primeiras décadas da sua vida. Nasceu no navio “Pátria”, em pleno Oceano Atlântico, durante a travessia dos seus pais entre Lisboa e Angola, e aí cresceu até aos 18 anos, quando veio para a “metrópole” estudar.
Daí que Fausto sempre tenha transportado consigo uma certa “africanidade” rítmica, na música e também nas palavras, que só Zeca Afonso (que viveu em Angola e mais tarde em Moçambique), de forma explícita, explorou nos seus discos.
No final da década de 80, Fausto atira-se de cabeça a essa herança africana, com o disco A Preto e Branco. Agarrou num conjunto de jovens músicos portugueses e africanos, muniu-se de poemas da África lusófona que conhecia da juventude e deu-nos 11 músicas cheias de calor, saudade e amor pela terra africana.
Tirando os primeiros tempos mais duros de cantor de intervenção, Fausto nunca foi simplista, e este disco não foge à regra: até por as palavras não serem as suas, não há lições de bons e maus a tirar aqui. Os temas prendem-se com o dia a dia de um povo: que era oprimido, sim, mas que também ria, também namorava, também gostava da festa e da fruta madura, e muitas vezes tudo isso se misturava numa mesma noite.
Temos canções de puro retrato carinhoso, como o arranque com “Era no tempo dos tamarindos”, com poema de Ernesto Lara Filho. Temos o calor tropicalista maravilhoso de “Picada de Marimbondo”, em que ainda assim há uma bicada colonial sobre esta espécie de vespa, com o poeta a acusar que “maribondo foi branco quem inventou”.
As palavras de José Craveirinha conduzem a doce balada “Apenas”, onde uma declaração de amor reclama para si o poder acima de tudo, do medo, mesmo nas “manhãs em que nos vêm buscar” e perante “a mulher de olhos espantados de medo”.
Segue-se a festa, mais propriamente a farra, com o “Poema da Farra”, de Mário António, um delicioso caldeirão de sopros e ritmos que retrata uma noite de festança em que o pobre narrador mais não pode fazer que invejar a beleza da namorada do seu afortunado primo.
Os anseios comuns voltam com “Namoro”, provavelmente o tema mais conhecido do disco. Já antes celebrizado por Sérgio Godinho logo em 1976, no seu disco De Pequenino se torce o destino. Essa história comovente e deliciosa da corte de um jovem a uma rapariga, que o vai rejeitando até ao “sim final”, tem autoria de Viriato da Cruz e música de Fausto. Comparando as duas versões, a de Fausto é mais quente, mais africana, mais suave, como uma brisa calorosa que nos acompanha do princípio ao fim.
“Praia da Samba”, único instrumental, é curiosamente o único tema cuja autoria musical não é de Fausto mas sim de Mário Rui Silva, músico e investigador angolano, que toca no disco. Este tema serve de intervalo, mesmo a meio do álbum, e dá entrada à deliciosa “Castigo pró comboio malandro”, de António Jacinto. O comboio é o comboio dos brancos, do negócio, onde tanto vão os bois como os trabalhadores “muita gente como eu/ cheio de poeira/ gente triste como os bois/ gente que vai no contrato”. O comboio é a exploração e o “progresso”, mas cospe fogo que queima o capim e o milho. Pior ainda: quando o comboio descarrila, quem é que trata do assunto? Os pretos, naturalmente. “Mas espera só/ quando esse comboio malandro descarrilar/ E os brancos chamar os pretos para empurrar/ Eu vou/ Mas não empurro/ Nem com chicote/ Finjo só que faço força!”. O castigo ao comboio malandro é simples e ternurento: “Comboio malandro/ você vai ver só o castigo/ vai dormir mesmo no meio do caminho”.
Os “Flagelados do vento leste”, do cabo-verdiano Ovídio Martins, vai buscar a história de luta e de pobreza dos camponeses de Cabo Verde, tema do livro de Manuel Lopes, com o mesmo nome.
A “Carta dum contratado” é uma missiva pungente de um homem que está longe, a trabalhar, e que quer mandar essa carta à mulher amada. Num extraordinário poema de António Jacinto, o autor fala de tudo o que gostaria de dizer, mas não consegue ultrapassar um problema: nem ele, nem a mulher, sabem ler ou escrever.
A caminho do final do disco, temos “Xicuembo”, de Rui Nogar, uma verdadeira história de “dor de corno”: o homem fica doido de amor por Ana Maria, sem conseguir dormir nem comer, mas Ana Maria “é mulher de todo gente/ menos meu minhamor”.
O fecho é com “Quando eu morrer”, de Alexandre Dáskalos, português e angolano do Huambo. É um final apropriado, sobre a morte não como um fim mas como uma libertação. Face ao imobilismo da morte, o poeta escolhe o mar, a rosa dos ventos, a permanente viagem sobre as ondas.
Se nos prendemos até aqui sobretudo com o conteúdo lírico, a vertente musical de A Preto e Branco não é, de todo, menos importante. Fausto funde de forma maravilhosa os estilos e os ritmos africanos com a sua guitarra acústica e uma linguagem próxima do jazz, com destaque ao baixo eléctrico e a discretos sintetizadores.
A Preto e Branco é, acima de tudo, uma carta de amor a Angola, a África, o continente que viveu 500 anos sob o jugo europeu mas que, depois da libertação, não encontrou a felicidade. Fausto chegou a dizer, numa entrevista, que “a Angola colonial era mais feliz do que esta”, porque a libertação não foi plena nem real, apenas a substituição de um domínio por outro, mais difuso mas até mais pernicioso, com novas elites locais a perpetuarem a desigualdade sem preocupação com o povo.
A situação de Angola, aliás, causou sempre muita tristeza ao músico, por constatar o falhanço da esperança e das promessas do tempo da independência. Talvez por isso, por reacção, este disco soe mais como uma homenagem pessoal e saudosista de uma infância feliz, do que um testemunho formal de luta contra a opressão (que também tem, diga-se).
O resultado final é, sobretudo, muito, muito feliz. Um disco onde o preto e o branco se encontram, partilham palavras, notas e memórias. Onde um passado comum, inapelavelmente comum, celebra esse património, onde há lugar para críticas, traumas e ajustes de contas, sim, mas onde também há coisas tão simples e universais como o amor, a festa, o sol, a amizade e a aventura que é sempre crescer.
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