Selling England By The Pound é um marco da história do rock progressivo. Um autêntico clássico absoluto, por isso resolvemos voltar a ele com toda a pompa e circunstância que merece. E em boa hora o fizemos!
Foi há poucos dias que a notícia surgiu, embora sem grande estrondo: o vocalista e baterista dos Genesis colocou um ponto final no seu percurso de apresentações ao vivo. Quem o anunciou foi o próprio Phil Collins, bastante fragilizado fisicamente, a meio do concerto onde esteve sempre sentado num pequeno banco, durante a apresentação de The Last Domino Tour, acompanhado pelos amigos de longa data Tony Banks e Mike Rutherford. É o tempo que teima em passar e em ir apagando quem com ele vai transitando.
Serve este facto para voltarmos atrás no tempo, muito atrás mesmo, quase ao início da banda que ajudou a colocar o rock progressivo no centro das atenções musicais dos melómanos mais exigentes e mais clever clever daquela época. Regressemos, então, ao ano de 1973, quase cinquenta anos passados desse acontecimento. A doze de outubro era lançado o álbum Selling England By The Pound, o quinto disco dos excêntricos britânicos, para muitos o melhor de toda a sua colheita e um dos mais influentes e conhecidos discos da onda prog, iniciada em finais da década de sessenta. É sobre esse tremendo álbum que hoje nos vamos deter, passando por ele os ouvidos e os olhos de forma atenta e analítica, sem pretensões maiores para além das óbvias: a de tornar evidente a sua natural grandeza e a sua real importância.
O rock progressivo trouxe à música elétrica muitas coisas novas, algumas excelentes, outras nem tanto. O exagero prog, por exemplo, soube tornar-se particularmente irritante. Muitos seguiram esse (por vezes) patético caminho de excessivo virtuosismo, outros sempre souberam temperar bem os ingredientes em uso. Os primeiros discos dos Genesis cabem nesse segundo enquadramento, e ainda hoje são bem capazes de agradar, mesmo que datados no seu tempo e na sua estética. Acontece o mesmo com todas as obras de arte que o desenrolar dos séculos nos foi oferecendo. Faz parte. Não é grave. Mesmo assim, e tendo em conta essa prisão à época em causa, ouvir Selling England By The Pound continua a ser estimulante, mesmo que saibamos há muito todos os seus caminhos, notas, canções e pequenos segredos.
Embora muitos dos grandes discos de rock progressivo tenham por base um determinado conceito (a moda dos álbuns conceptuais ganha nesse período um enorme incremento), não nos parece seguro entender apenas dessa forma este quinto longa duração da banda de Peter Gabriel e companhia. Talvez seja mais correto observar Selling England By The Pound como um conjunto de pequenas narrativas cujo epicentro, digamos assim, se funda em imaginários da cultura britânica e também da realidade vivida no tempo em que o disco veio ao mundo. As letras dos temas do álbum percorrem os meandros das fábulas, dos contos de fadas e escritas afins, mas os seus significados remetem para realidades bem mais concretas. O mítico verso inicial do primeiro tema do álbum (“Can you tell me where my country lies?”), cantado sem qualquer acompanhamento musical, funciona como mote para todo o trabalho, e a pergunta feita terá resposta nesse e em alguns dos temas seguintes, embora sem a pretensão estrita de um verdadeiro e definidor conceito.
“Dancing With The Moonlit Knight”, o tema que inicia o álbum, parece ser uma intrincada sátira à destruição de vários aspetos da cultura britânica pelas mãos das poderosas empresas capitalistas. Aliás, o título do disco foi retirado do Manifesto do Partido Trabalhista, tornado público em eleições que no tempo decorriam. Mas o que verdadeiramente importa aqui são as guitarras e as suas texturas, que começam por dar um primeiro andamento ao longo do tema de pouco mais de oito minutos. É, seguramente, uma das melhores composições de sempre da banda, mesmo que no seu tutano outras pareçam nascer, tais as mudanças que vamos ouvindo no decurso do tema. No entanto, não perde a sua unidade, nem nos cansa um único segundo. Um autêntico triunfo! Curiosamente, e do ponto de vista comercial, o hit do álbum vem logo a seguir, sendo que “I Know What I Like (In Your Wardrobe)” subiu nas tabelas como nenhuma outra composição da banda até então. É, pois claro, uma canção algo adocicada, linda e encantadora. O baixo de Rutherford faz milagres, aqui. Outro triunfo, portanto, assim como “Firth of Fifth”, a começar pelo piano de Tony Banks, até estoirar no magnífico tema de rock que na verdade é. O classicismo do prog-rock nota-se bem aqui, sobretudo nos referidos teclados iniciais. Mais de nove minutos e meio de puro deleite! Até a flauta de Peter Gabriel se faz ouvir maravilhosamente neste tema, transparecendo uma certa vertente rural, por vezes bem presente no rock sinfónico. Depois, a curta “More Fool Me”, que é um marco na discografia da banda, uma vez que nela, pela primeira vez, Phil Collins assume-se como vocalista, o que seria uma espécie de prenúncio, uma vez que pouco tempo depois, sobretudo devido à partida de Peter Gabriel, coube-lhe assumir definitivamente o controle dos vocais. “More Fool Me” fecha o Lado A de Selling England By The Pound. E bem, diga-se, pois fá-lo tranquilamente, como que a preparar-nos para o assalto épico de “The Battle of Epping Forest”, que abre a segunda rodela de som. O que aqui temos é prog no seu maior desígnio. Um tema longo, de quase doze minutos, em tom de marcha tropeira, de início, mas que depois se espraia para os mais variados horizontes. Um pouco excessiva? Talvez, mas resistente a esse potencial defeito, mesmo assim. “After the Ordeal” é um tema meramente instrumental, dividindo-se entre piano e guitarra, até que outro monstro aparece, o incrível “The Cinema Show”, composição baseada num poema de T.S. Eliot (“The Waste Land”), incorporando personagens como Romeo e Juliet que se preparam para um encontro amoroso, depois de um dia de trabalho. No entanto, a referência a Tirésias, o conhecido profeta da mitologia grega que viveu como mulher durante sete anos, também por aqui surge, conferindo ainda maior erudição à letra cantada por Peter Gabriel. A guitarra de Steve Hackett tem, neste tema, muito que se lhe diga. Brilhante! Finalmente, o disco encerra com a brevíssima “Aisle of Plenty”, momento que, de alguma maneira, recupera o tema inicial, tornando redondo todo este Selling England By The Pound. A sua letra não engana. O consumismo é o target pretendido. Assim sendo, “Aisle of Plenty” encerra bem o álbum cujo conceito (ou nem tanto assim, como antes referimos) deriva do que se sentia nos anos setenta na velha Albion. Por fim, e acima de tudo, “it’s scrambled eggs”.
Como começámos por referir, Selling England By The Pound é um colosso do prog-rock! Um disco imenso que ainda hoje será capaz de conquistar novos ouvintes, sobretudo aqueles que sentem pela música mais do que a simples vontade de a ir trauteando. Tem os seus encantos e os seus mistérios, mas é sobretudo um momento de enorme inspiração artística, se é que as coisas podem ser assim colocadas. E, para mais, o álbum parece ser um recreio onde cinco músicos de enorme talento brincam com os seus instrumentos. É uma brincadeira séria, como é evidente, e acontece apenas para nosso eterno contentamento!
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