O álbum de estreia dos Noves Fora Nada, Da Opulência ao Carvão, integra com engenho facetas muito diferentes do rock: gasolina, mel, escuridão.
Os Noves Fora Nada têm tanto de frescura como de traquejo (TV Rural, Uaninauei e Bichos foram alguns dos grupos de rock alternativo – sempre cantado em português – por onde estes quatro “veteranos” passaram). Por isso não estranhamos a maturidade do seu álbum de estreia, Da Opulência ao Carvão, com o seu equilíbrio feliz entre alcatrão e souplesse. A começar pela sua aversão a fórmulas: os temas podem começar num floco levíssimo de algodão e acabar numa bigorna de ferro a arder, sem qualquer aviso no entremeio (“Óleo na Estrada” é um bom exemplo). Não inventam a roda – há sempre uma agradável familiaridade – mas em nenhum momento pensamos: “lá estão os bandalhos a imitar fulano e cicrano”. São originais no sentido dado por Oscar Wilde: escondem muito bem as fontes…
É um disco escuro – na música e também nas palavras. Uma escuridão pessoal e intransmissível, recusando os lugares comuns góticos em favor de uma melancolia única de alfaiate. A anti-voz de David Jacinto – rouca e frágil à Dead Kennedys – é inesperadamente expressiva, usando as feridas nas suas cordas vocais para melhor exprimir as suas maleitas de alma (contra as advertências reiteradas do seu otorrinolaringologista). Acreditamos nas suas palavras amargas e auto-irónicas porque transbordam de verdade emocional (o seu coração amarrotado é o nosso, quem nunca esteve na merda que atire a primeira pedra). Além da voz, e do sangue com que escreve, Jacinto expressa a sua mágoa com uma ocasional harmónica, pungente em “Isaura”, digna de um western de Sergio Leone.
Se a música dos Noves Fora Nada é de tradição anglo-saxónica, é Jacinto que lhe dá mais portugalidade, primeiro nas cuidadas letras em português, depois na entoação fadista com que por vezes as canta (o caso mais flagrante é o de “Isaura”). Os outros seguem-lhe na peugada: nos ubíquos coros há também um pouco da nossa identidade.
Por mais que a (irrepreensível) bateria de Dino Récio tente chamar-lhe à razão, não há volta a dar: o baixo de David Santos, no psicólogo há uma porrada de tempo, continua convencido de que é uma guitarra, mais melódico do que groovy, desenhando bonitos contracantos. Exageramos: quando é preciso abdica do melodismo e repete – em nome da eficácia rítmica – a mesma obsessiva nota (cuidado para não se arranharem no “Arame Farpado”). Sempre muito destacado na mistura, tem um apreço especial pelo pedal de distorção, guilhotinando cabeças com o seu gume afiado (até espirra sangue em “Divisórias”).
A guitarra de Alexandre Tavares, além da sua imaginação melódica, revela erudição pop, explorando com igual à vontade muitas estéticas diferentes, do psicadélico ao western spaghetti, do quase metal ao quase indie. Muito dinheiro deve esturrar o homem na sua pedalboard, tal é a variedade de timbres com que nos delicia. Ao bom gosto alia sempre a parcimónia, nunca cedendo ao show off virtuoso, tocando apenas as notas estritamente necessárias para o deleite do nosso córtex auditivo. São raros os solos mas quando os há têm a bazófia de cerveja e gasóleo que tanto apreciamos (ouçam “Só Vês Costas”, um hino ao rock’n’roll).
Da Opulência ao Carvão é um disco tão consistente – onze tiros, onze melros ao chão – como variado: doce e acre, roqueiro e gentil, sonhador e terra-a-terra ao mesmo tempo. A produção – a cargo dos próprios – é quente e orgânica, a mais analógica das gravações digitais. Não há por aqui plug-ins, auto-tunes e demais mariquices. Uma bateria, um baixo e uma guitarra são tudo o que é preciso para erguer bem alto a velha chama do rock’n’roll. E o mundo precisa tanto dessa chama…
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