quinta-feira, 20 de outubro de 2022

POEMAS CANTADOS DE SÉRGIO GODINHO

SÉRGIO GODINHO

Lá Em Baixo

Sérgio Godinho


Lá em baixo ainda anda gente

Apesar de ser tão noite


Há quem tema a madrugada

E no escuro se afoite


Há quem durma tão cansado

Nem um beijo os estremece


De manhã acordarão

Para o que não lhes apetece


E há quem imite os lobos

Embora imitando gente


Há quem lute e ao lutar

Veja o mundo a andar p’rá frente


E tu Maria diz-me onde andas tu

Qual de nós faltou hoje ao rendez-vous

Qual de nós viu a noite

Até ser já quase, de dia

É tarde, Maria

Toda a gente passou horas

Em que andou desencontrado


Como à espera do comboio

Na paragem do autocarro

Como à espera do comboio

Na paragem do autocarro


Lá em baixo ainda anda gente

E um sonho que anda à solta


Vem bater à minha porta

Diz a senha da revolta


Vou plantá-lo e pô-lo ao Sol

Até que se recomponha


É um sonho que acordado

Vale bem quem ele sonha


Lá em baixo, até já disse

Que é que tem a ver comigo


E no entanto sobressalto

Se me batem ao postigo


E tu Maria diz-me onde andas tu

Qual de nós faltou hoje ao rendez-vous

Qual de nós viu a noite

Até ser já quase de dia

É tarde, Maria

Toda a gente passou horas

Em que andou desencontrado


Como à espera do comboio

Na paragem do autocarro

Como à espera do comboio

Na paragem do autocarro


Lá em baixo ainda anda gente

E uma cara conhecida


Vai abrindo noite fora

Uma luz como uma ferida


Como a luz que corre atrás

Da corrida de um cometa


E vejo vales e valados

No sopé duma valeta


Lá em baixo ainda há quem passe

E uma cara conhecida


Vai ateando noite fora

Um incêndio na avenida


És tu Maria, eu sei, já sei, és tu

Qual de nós faltou hoje ao rendez-vous

Qual de nós viu a noite

Até ser já quase, de dia

É tarde, Maria

Toda a gente passou horas

Em que andou desencontrado


Como à espera do comboio

Na paragem do autocarro 


Lá Isso É

Sérgio Godinho


Quatro rodas tem o carro (não tem? lá isso tem)

três pèzinhos tem o banco (não tem? lá isso tem)

dois olhinhos tem o cego

quando anda a fazer que é manco


O fascismo é uma minhoca (não é? lá isso é)

que se infiltra na maçã (não é? lá isso é)

ou vem com botas cardadas

ou com pèzinhos de lã


O mandão é que põe e dispõe

mas o povo é que manda no povo

ai isso é claro, claro

mais claro que a clara dum ovo


Há quem mande obedecer (não há? lá isso há)

há quem disso se encarregue (não há? lá isso há)

e também há quem não tenha

ponta pr´onde se lhe pegue


Há partidos de direita (não há? lá isso há)

que põem sempre a bola ao centro (não é? lá isso é)

mas quem melhor os fintar

é que vai marcar o tento


O mandão é que põe e dispõe

mas o povo é que manda no povo

ai isso é claro, claro

mais claro que a clara dum ovo


É da gente da nossa terra (não é? lá isso é)

é da terra a nossa gente (não é? lá isso é)

de Trás-os-Montes ao Algarve

das ilhas ao Continente

e é estranho que haja p´ra quem

isto não seja evidente


O mandão é que põe e dispõe

mas o povo é que manda no povo

ai isso é claro, claro

mais claro que a clara dum ovo

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