sexta-feira, 7 de outubro de 2022

POEMAS CANTADOS DE SÉRGIO GODINHO


 Fado Gago

Sérgio Godinho

 

Fado triste

fado negro das vielas

onde, agora é que são elas

encomendaram-me este fado

"...- Mas só se for falado..."

Fado falado?

Pagam bem e dão trocado

o fado é pago!

Mas eu que sou gago

só consigo balbuciar...

(melhor cantar:)


Mãos caprichosas

que sebosas

mimoseiam a guitarra

mimoseando

o fado nefando

que se entranha

nas vielas

mãos tagarelas

indecentes

mãos tão juntas, tão ardentes

os dedos quentes

insolentes

só se amainam na guitarra


Espera aí

já percebi

que entoando

mesmo falando, mesmo falando

se falar como que em verso

não gaguejo e até converso

(como as tais mãos na guitarra...)


Eram assim essas mãos

mãos de ferro e mãos de farra

desse Chico de má-vida

que (p´ra ser fiel à história)

andava na boa-vida

com a Glória

e está bom de ver

que o mulherio de Alfama

que é todo de alta linhagem

achava aquilo suspeito: vem de viagem

esse Chico marinheiro, todo feito

e vá de pendurar a âncora

na varanda da pequena

(Estão a ver a cena...)


E está bom de imaginar

(mesmo sem ver)

que dentro desse lugar

o que tinha a mercearia mesmo em

frente

tudo era transparente

o Chico, quando dormia

era marinheiro em terra

era a paz depois da guerra, a sua Glória

por isso dormiam juntos

sem divisória


Mãos muito sábias

tantas lábias

nas linhas das quatro palmas

são duas almas

irmanadas

pelas sinas da paixão

corpo na mão

mão que esvoaça

e amordaça

a sensatez

e cada vez

que o fado canta

esqueço tanta

da gaguez


Mas um dia - há sempre um dia

(Moeda ao ar!)

a cara e a coroa

viram a sorte mudar

vamos lá explicar


É que o Chico, c´a memória

de ter amor de mulher

vez à vez, em cada porto

não cuidou de amar a Glória

foi-se à fruta no pomar

deixou a planta no horto

ou seja:

resolveu catrafilar

toda a mulher que passava

na rua por onde a Glória - e aqui vai

mas desta história -

espreitava

Ah! Que a Glória é mulher tesa...

quando viu o Chico

rua abaixo, rua acima

atracado a uma ´pirua´

uma garina

de resto bem conhecida

daquelas que faz p´la vida

e ela toda pimpante

e ele todo galante


Veio-lhe à boca o ciume

e a navalha foi lume

brilhando de raiva

todo este bairro, que saiba

que os dois que ali vão

vão ter de morrer

ai, vai correr muito sangue

eu esfolo, estrafego

eu pego nos dois

atiro as carcaças ao rio

e nem olho p´ra trás

tudo isto faz

alarido

e o Chico já ferido

só tenta dizer:

- Glória, que fazes?

Que morro sem quase

ter tempo de me arrepender

dá-me uma oportunidade

e nesta cidade

eu prometo ser teu

eu quero morrer no mar alto

e depois ir p´ró céu


Mãos homicidas

amanticidas

assim eram se não fosse

o olhar doce

por um instante

desse homem tão inconstante

mãos que da Glória

têm o nome

e em seu nome vão amar

eu fico gago

com o afago

que essas mãos souberam dar


E o afagar dessas mãos

já desenha na pele

a promessa futura

- Jura, vá jura que és

todo meu ´té ao fim

todo, todo de mim

- Glória, vou desembarcar

dessa vida em que andava

à deriva no amor

- Chico, os meus braços de mar

dão-te abrigo e calor


E assim acaba esta história

o Chico e a Glória

está bom de se ver

ambos com vidas atrás

vão atrás de uma vida

em que é tudo viver

quem fala assim

não é gago

(não quero voltar a um assunto

encerrado)

mas...

digam-me lá

se eu não sou gago

e canto o fado


Farto de Voar

Sérgio Godinho


Farto de voar

Pouso as palavras no chão

Entro no mar

Sinto o sal de mão em mão

Tenho um barco na vida espetado

Só suspenso por fios dum lado

E do outro a cair

a cair

no arpão

no arpão


Levo a dormir

Sonhos que andei para trás

Ergo o porvir

Trago nos bolsos a paz

Tenho um corpo na morte espetado

Só suspenso por balas dum lado

E do outro a escapar

a escapar

de raspão

de raspão


Ponho a girar

Cantos que ninguém encerra

De par em par

Abro as janelas para terra

Tenho um quarto na fome espetado

Só suspenso por água dum lado

E do outro a cair

a cair

no alçapão

no alçapão


Farto de voar

Pouso as palavras no chão

Entro no mar

Sinto o sal de mão em mão

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