terça-feira, 18 de outubro de 2022

ROSALÍA – MOTOMAMI (2022)

Se o valor de El Mal Querer reside na forma como ROSALÍA construiu o álbum a partir de um romance anónimo escrito em occitânico durante o século XIII, em que cada tema é uma capítulo da obra, MOTOMAMI, destaca-se pela segurança com que a jovem artista volta a unir experiências musicais que, à partida, ir-se-iam rejeitar mutuamente.

Em 2018, ROSALÍA alcançou o Olimpo da música com El Mal Querer. Por toda a parte, só se falava de ROSALÍA e daquele álbum que, misturando flamenco, pop e R&B, representava novas possibilidades sonoras, mas eu ignorei-o e ignorei-a. A verdade é que só comecei a reparar em ROSALÍA quando a ouvi cantar a “Me Quedo Contigo”, dos Los Chunguitos, na cerimónia dos Prémios Goya, em 2019: levei uma estalada musical bastante forte, contudo foi necessária, porque me fez perceber que a voz de «La Rosalía» e a sua direção artística são capazes de criar planos mentais que nos fazem recordar, por exemplo, o neoclassicismo de Goya. Mais tarde, outros registos, como o pesadíssimo “Con Altura” (em que ROSALÍA aparece ao lado de J BALVIN e do músico-produtor El Guincho), mostraram-me que a espanhola também é capaz de projetar na cabeça dos ouvintes a discoteca preferida da comunidade latina de Miami.

ROSALÍA a cantar a “Me Quedo Contigo”, dos Los Chunguitos, na cerimónia dos Prémios Goya, em 2019.

Já sabemos que o mundo é controlado pelas modas, a música é controlada pelos streams, e nós somos ovelhas: seguimos, quase sempre, as mesmas tendências e consumimos o que está nos tops. No entanto, não somos cegos, nem mudos. Não descobrimos os artistas emergentes ao mesmo tempo, e não escutamos os artistas mundialmente reconhecidos em simultâneo, porque a música de determinados autores atinge-nos e «bate-nos» em fases diferentes. Não pretendo que este texto seja sobre a minha relação com a música de ROSALÍA, porém – procuro apenas introduzir o seu mais recente álbum, o estrondoso MOTOMAMI, que evidencia, mais uma vez, a criatividade louca que corre no sangue da artista catalã, e demonstra que ROSALÍA é uma superestrela mundial, que pertence à década em que a fama não depende necessariamente de canções cantadas em inglês. 

Se o valor de El Mal Querer reside na forma como ROSALÍA construiu o álbum a partir de um romance anónimo escrito em occitânico durante o século XIII, em que cada tema é uma capítulo da obra, MOTOMAMI, destaca-se pela segurança com que a jovem artista volta a unir experiências musicais que, à partida, ir-se-iam rejeitar mutuamente. Em El Mal Querer, ROSALÍA já tinha conseguido realizar essas ligações sonoras «impossíveis», no entanto, em MOTOMAMI, ela segue o mesmo caminho, mas dá-se ao luxo de comercializar as suas produções, de forma a torná-las mais acessíveis e viciantes. Naquele que é o seu terceiro LP, há menos flamenco – ROSALÍA admitiu-o à Rimas e Batidas. Assim, em termos sonoros, MOTOMAMI, distanciando-se das experiências anteriores, assume-se como um álbum do mundo por ter sido construído a partir dos vários lugares por onde «La Rosalía» passou durante o processo de produção: Los Angeles, New York, Miami, República Dominicana, Porto Rico e Barcelona. 

ROSALÍA conta que o álbum está dividido em duas partes: MOTO e MAMI. A primeira parte do LP (MOTO) é mais explosiva e assenta em sonoridades próximas do reggaeton, enquanto a segunda (MAMI) é mais contemplativa e procura estabelecer ligações com temas mais naturais e sensíveis, ainda que, durante todo o álbum, o nível de intensidade das canções alterne com frequência – por exemplo, a seguir a “CHICKEN TERIYAKI”, um hino reggaeton capaz de destruir as colunas de qualquer discoteca, vem “HENTAI”, uma das baladas mais bonitas e cuidadas da carreira de ROSALÍA. Esta coexistência de disposições diferentes faz com que MOTOMAMI seja o álbum mais pessoal de ROSALÍA até à data: cada tema retrata uma experiência específica da artista como mulher, daí que MOTOMAMI é um autoretrato transparente. Tal como a sua mãe e a sua avó, ROSALÍA é uma «motomami». Foi o que a catalã admitiu em entrevista à Rolling Stone. Mas o que é uma «motomami»? Ao El País, a artista, não revelando exatamente o sentido do termo, disse que «motomami» é uma palavra cheia de energia e personalidade, e que representa uma forma de estar no mundo.

MOTOMAMI prova que existem diversas estradas para o sucesso comercial.

MOTOMAMI começa com um curtíssimo período de free jazz – dura pouco, mas é o suficiente para ficarmos presos a “SAOKO”, onde encontramos uma ROSALÍA que rappa. O primeiro tema do álbum diz-nos que o LP vai ser poderoso e enérgico, mas criativo e inventivo também, porque, a meio da canção, o jazz regressa sorrateiramente. A seguir, em “CANDY”, ROSALÍA partilha a primeira de várias baladas e canta sobre um amor impossível. Em alguns momentos, o instrumental parece aproximar-se da “Archangel” , de Burial, assim que ROSALÍA canta o coro (“Sé que tú no me has olvida’ o / No me has olvida’ o, no me has olvida’ o”). Em “LA FAMA”, onde a cantora tem a companhia de The Weeknd, que se faz ouvir em espanhol, ROSALÍA aborda a sua ascensão ao estrelato. Apenas em “BULERÍAS” é que o flamenco surge; aqui e em “DELIRIO DE GRANDEZA” e “SAKURA”, ROSALÍA aposta em faixas mais tradicionais e «espanholas», nas quais é a sua voz que controla o tempo. “BIZCOCHITO”, que sucede à doce “HENTAI”, é música de feira e de folia – o refrão, que é feito à base de um “Ta-ra-rá ta-ra-rá tá-tá”, assume o controlo dos pés e depois do corpo inteiro. A seguir, em “G3 N15”, ROSALÍA introduz, novamente, um tema atmosférico, durante o qual é impossível não escutar, lá ao fundo, um órgão de igreja. A dada altura em MOTOMAMI, na nona posição, surge uma faixa com o mesmo nome: “MOTOMAMI” é um interlúdio veloz que dispõe de uma produção que poderia ter sido feita à medida de um rapper norte-americano dos anos 90’ ou contemporâneo. Entramos na segunda parte do LP – MAMI! – e escutamos desde logo a bipolar “DIABLO”: tem um começo sensível, mas, ao desenvolver-se, transforma-se numa faixa reggaeton (outra vez) e, perto do final, para a surpresa dos nossos ouvidos, surge a voz de James Blake. Em “CUUUUuuuuuute”, numa primeira fase, ficamos com a ideia de que Kanye West terá invadido o estúdio de ROSALÍA; é uma música verdadeiramente explosiva, que podia figurar em Yeezus. Em “COMO UN G”, a calma volta, e sentimos que o álbum está a chegar ao fim. Ainda assim, até “SAKURA”, que fecha MOTOMAMI, ainda passamos por outro interlúdio (“Abcdefg”) e pela “LA COMBI VERSACE”, que junta ROSALÍA a Tokischa, a rapper da República Dominicana.

Assim que MOTOMAMI termina, temos vontade de ouvi-lo outra vez e de entrar, novamente, no mundo artístico criado por ROSALÍA, de forma a escutarmos a sua história – que, desta vez, é mesmo a sua história de vida. Em 2022, MOTOMAMI é um trabalho importante, pois prova que existem diversas estradas para o sucesso comercial. Os tempos em que era necessário cantar em inglês ficaram no passado (recente). Hoje em dia, desde que haja criatividade e invenção, é possível chegar a todo o lado e ao topo de todas as tabelas. ROSALÍA, primeiro com o conceptual El Mal Querer e agora com o comercial MOTOMAMI, conseguiu alcançar o céu e, a cada dia que passa, transforma-se numa estrela criativa que ilumina cada vez mais o presente e o futuro da música pop

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