sábado, 1 de outubro de 2022

Salif Keita – Moffou (2002)


 

Moffou é a obra-prima do maliano Salif Keita. Mais acústica do que eléctrica. Africaníssima mas também europeia. E uma voz imensa, feita de mel e de areia.

Salif Keita nasce numa aldeia perto de Bamako – a capital do Mali -, filho de camponeses pobres mas altivos, de sangue aristocrático. Vem ao mundo com uma doença hereditária chamada albinismo – sem melanina na pele, no cabelo e nos olhos. Os seus pais, não sendo doutos em genética, não compreendem: se eles têm a pele da cor do chocolate negro, como podem ter gerado um filho da cor do chocolate branco? Só encontram uma explicação: Salif vem do mundo dos espíritos invisíveis assombrar o nosso mundo visível. O senhor Keita renega a mulher e a “aberração” que ela pariu, expulsando-os de casa. Mas o imã da aldeia acaba por persuadi-lo a acolhê-los de volta: “Salif nasceu assim porque Alá assim o quis”.

Mesmo voltando ao seio da família, Salif continua a carregar o estigma de ser diferente. Os outros miúdos gozam com ele e batem-lhe. Os graúdos cospem no chão quando o vêem. Vive no terror de a qualquer momento poder ser esquartejado pela turba animista, convencida de que o seu corpo – vindo do mundo dos espíritos – possui propriedades mágicas e curativas.

As suas perspectivas de futuro não são animadoras. Não pode ir para a escola do Corão porque vê mal. Não pode ser camponês porque a sua pele pálida não aguenta o sol agreste. Não pode ser músico porque é um ofício interdito à sua casta nobre. Se o destino lhe fecha todas as portas, só há uma alternativa: abrir uma delas à força, contra tudo e contra todos. Apaixona-se pela música. Aprende a tocar viola às escondidas. Quando está nos campos do pai, canta o mais alto que consegue para afugentar os macacos das colheitas. Contra a vontade da família, decide ser músico, pagando um preço bem alto: é proscrito por uma segunda vez. O que tem que ser tem muita força.

Aos dezoito anos, ruma para Bamako, com o propósito de viver da música. Toca em esquinas e bares mas o pouco que recebe não lhe permite pagar o aluguer de uma casa. Dorme ao relento junto ao mercado. Porém, a sua voz incrível começa a dar que falar. De tal forma que em 1970 é convidado para integrar o principal conjunto do Mali – a Rail Band, sediada no hotel da estação de comboios de Bamako. A estética da Rail Band é uma mistura de música tradicional do Mali – tocada com instrumentos modernos e eléctricos – com pinceladas jazzísticas e afro-cubanas. Se a tradição animista insiste que ele é um invisível, Keita revolta-se, habitando o mais visível dos lugares: o palco.

A sua reputação vai crescendo, de tal forma que os Les Ambassadeurs du Motel de Bamako não descansam enquanto não o conseguem açambarcar à Rail Band, a sua banda rival – o que acontece em 1973. A sensibilidade dos Ambassadeurs é semelhante, trilhando o mesmo eixo Mali-Cuba-Estados Unidos, uma outra forma de contar a diáspora africana pelo mundo. Em 1978, dá-se um golpe de estado no Mali e a banda, apoiada pelo governo anterior, cai em desgraça. Temendo pela própria vida, fogem para a Costa do Marfim, mudando o nome para Les Ambassadeurs Internationaux.

Em 1984, a banda acaba. É tempo de se mudar para Paris, à procura de mundo e de melhores estúdios de gravação. Assenta praça em Montreuil, subúrbio de Paris onde reside uma numerosa comunidade de imigrantes malianos. Em 1988, lança o seu primeiro disco em nome próprio, vestindo as raízes do Mali com roupas “modernaças” pop/rock, com sintetizadores e drum machines. E assim continua pela década de noventa, namorando sem pudor com a modernidade anglo-saxónica.

Na viragem para o novo milénio, regressa ao Mali. É com 53 anos de idade que faz a sua incontestada obra-prima. Moffou, de 2002, corta com a estética eléctrica dos discos anteriores, passando a haver um predomínio de texturas acústicas.

De África, Moffou traz tudo: as percussões tradicionais e os seus polirritmos frenéticos e sincopados; os coros femininos respondendo às chamadas de Keita; um instrumento de cordas chamado ngoni, brincando aos micro-tons; e, sobretudo, a voz de Keita, negra como o sul do Sahara mas arabesca como um minarete no deserto. Há doçura mascavada no seu timbre tenor, misturada com a terra vermelhíssima do Mali.

Da Europa, vem o acordeão das ruas de Paris, a flauta dos contos de fadas, o piano fugindo dos salões eruditos para os pátios populares.

Daí que seja errado dizer que Moffou é um regresso às impolutas origens, como se fosse um objecto de museu para consumo dos turistas. Keita sempre contaminou as raízes do Mali com linguagens vindas de fora, e este disco não é excepção. O que muda é apenas o que agora se adiciona ao caldeirão africano. Para aqueles que insistem no valor da pureza tradicional, há uma aproximação a esse tonto ideal nos três temas onde Keita se apresenta sozinho: só a sua guitarra e a sua voz de anjo mandinga.

A canção de abertura, “Yamore”- um dueto com a enorme Cesária Évora -, é uma quase morna, lânguida como a saudade. O groove de “Madan” é tão frenético que brancos com insuficiência cardíaca não o devem ouvir. “Katolon” é exótico e sombrio, Keita revivendo, talvez, terrores de infância – a horda supersticiosa cortando albinos aos pedaços. “Moussoulu” é sincopada mas triste, como quem dança e chora ao mesmo tempo. Dez canções transbordantes de Mali e de mundo. Dez flechas em cheio no coração de Alá. Dez em dez, sentencia o crítico de óculos bisonhos, à procura de um pouco mais de infinito…


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