domingo, 2 de outubro de 2022

Sociedade da Grã-Ordem Kavernista – Sessão das 10 (1971)


 

Em 1971, um quarteto de músicos, praticamente desconhecidos, gravou uma pérola, recheada de humor e criatividade. Sessão das 10, lançado no meio da ditadura brasileira, é um retrato desses tempos, com ironia suficiente para fugir à censura.

A ideia de “A Sociedade da grã-ordem kavernista apresenta sessão das dez” foi de Raul Seixas, à época produtor da editora CBS, tendo convidado dois seus conhecidos da Bahia, Edy Star e Sérgio Sampaio. O elemento escolhido para finalizar este quarteto foi Miriam Batucada, que era a mais conhecida dos quatro pelas suas participações em programas televisivos através das suas habilidades de batucar com as mãos.

Mesmo com várias letras censuradas, o disco saiu e foi distribuído para as rádios e jornais, mas depois de 15 dias acabou cancelado e mandado devolver pela editora CBS sem mais explicações. Havia o mito de que o disco tinha sido cancelado porque ter sido, alegadamente, gravado de forma clandestina e sem conhecimento da editora. No entanto, esse mito já foi desmentido por Edy Star, único kavernista ainda sobrevivente.

Sessão das 10 é, basicamente, o segundo trabalho de Raul Seixas, depois de uma primeira tentativa de vingar no mundo da música com Raulzito e os panteras, em 1968. Raul Seixas, amante do rock n’ roll americano mas também da tradição brasileira do baião, sendo Luiz Gonzaga um dos seus heróis, a par de Elvis Presley, atravessava uma fase de ostracismo e compunha canções para outros artistas, como para a cantora Diana e Jerry Adriani, devido ao fracasso do seu primeiro projecto.

Após a frustração do falhanço e tendo de abandonar o Rio de Janeiro de volta à sua cidade natal, Salvador, Raul Seixas acabaria por ser convidado para ser produtor na CBS. Durante alguns anos seria essa a sua função no mundo da música. No entanto, o amigo Sérgio Sampaio incentivava Raul a retomar a sua carreira de cantor e compositor. Desta pressão acabaria por surgir Sessão das 10, trabalho inspirado em discos como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, e Freak out! (1966), da banda The Mothers of Invention, liderada por Frank Zappa. Ao invés do psicadelismo ou experimentalismo, o grupo brasileiro misturaria no seu som, samba, baião, música brega e jovem guarda.

No disco, os dois baianos, um descendente de índio capixaba e uma paulista ironizam o nascente showbiz brasileiro no seu principal centro, o Rio de Janeiro. “Eta Vida” é precedida por motivos sonoros circenses e alegres, onde é anunciado que a Sociedade da Grã Ordem Kavernista vai apresentar “o maior espetáculo da Terra”. A partir daqui começa a sátira deste belo disco, com estrofes a louvar as maravilhas da cidade maravilhosa, entre o futebol no maracanã aos domingos e o pagamento a prestações (que ainda hoje é uma necessidade), passando pelo sol e mar em Ipanema. No entanto, apesar de todas estas “virtudes” enaltecidas na canção, Raul Seixas apenas quer largar tudo e ir para a sua cidade natal, mesmo que a vida no Rio seja genial, com cultura e carnaval na televisão à noite, com “garota propaganda” e o seu bikini.

A crítica social à classe média e à sua sociedade de consumo continua no início “Sessão das 10”, com o seguinte verso: “eu comprei uma televisão /a prestação, a prestação / eu comprei uma televisão / que distração, que distração!”, logo passando para a voz de Edy Star emulando os trovadores com uma serasta sarcástica.

Todas as faixas do disco têm uma espécie de introdução, não tendo absolutamente nada a ver com o resto da música, o que lhe conferia um ar mais avant-garde, do qual Raul Seixas sempre foi fiel. A terceira faixa (“Eu Vou Botar Pra Ferver”) é uma espécie de homenagem ao movimento Jovem Guarda, transitando para um baião com toques de samba.

Em “Quero ir”, os músicos estão preparados para abandonar o Rio após o “fracasso”: “eu vou pra Bahia ou volto pra Cachoeiro de Itapemirim”, ou seja, Edy Star e Raulzito voltariam ao seu estado natal e o capixaba Sérgio Sampaio para Cachoeiro de Itapemirim, cidade natal de Sérgio e do rei da Jovem Guarda, Roberto Carlos.

Já perto do final do álbum, Raul Seixas volta para nos dar a melhor canção do disco, e uma das melhores composições da sua carreira. O samba “Aos Trancos e Barrancos” traz uma variação das ideias apresentadas anteriormente durante o disco. Se antes a ideia era a de não pertença e desejo de ir embora, aqui temos despreocupação, apresentando a ideia do malandro que se deu bem. “Sou o cara que subiu na vida, morava no morro e agora moro no Leblon”. Nesta canção, a cidade do Rio de Janeiro surge encantadora e cheia de oportunidades, e tudo parece estar bem: “Rio de Janeiro, Você não me dá tempo de pensar com tantas cores. Sob este sol, Pra quê pensar, se eu tenho o que quero? Tenho a nega, o meu bolero, A TV e o futebol.”

Sessão das 10 não é apenas o “disco perdido de Raul Seixas”. Vai além da faceta mítica de ter sido um disco gravado ilegalmente, segundo muitos ainda pensam. É um disco gravado por quatro personalidades diferentes, mas em que o resultado final é maior do que a soma dos seus executantes. Por debaixo de uma suposta simplicidade, há uma grande complexidade de temas que são mais profundos do que numa primeira audição se encontra. É uma crónica da sociedade da época, bem representada, embora mascarada pela anarquia e excentricidade das composições. Parecendo não querer dizer nada, Raul, Sérgio, Edy e Miriam disseram muita coisa. E esse é o seu grande legado.

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