domingo, 2 de outubro de 2022

Toni Tornado – “BR-3” (1971)


Apesar do nome de super herói, Tony Tornado poderá ser um dos brasileiros mais interessantes de sempre que, entre uma miríade de coisas, foi o autor de um belíssimo disco chamado “BR-3”.

Quem diria que um rapaz negro nascido numa aldeia perdida no interior de São Paulo, em 1930, viria a ser amigo de Stokely Carmichael, histórico líder do movimento Black Panther nos EUA, ou exilado político na Coreia do Norte. Desde pequeno que sabia que estava destinado a voos maiores, mas isso não lhe chegaria se não saísse de Mirante do Paranapanema, a localidade onde nasceu. Foi por isso que se mandou para o Rio de Janeiro com apenas 17 anos, metrópole onde se entreteve a engraxar sapatos e a vender amendoins até ter-se alistado no Exército Brasileiro. Nesta altura, já gastava o pouco dinheiro que tinha em discos de Chubby Checker ou Little Richard, seus grandes ídolos.

Toda a imagética e cultura afro-americana do funk, rock e blues foram construíndo-o enquanto artista de palco. Fugindo à norma (aborrecida?) de que a música brasileira de qualidade só se divide entre Bossa Nova e MPB, Tornado foi trilhando caminho ao cantar, em boates e botecos, versões de funk norte-americano, de tal forma que cedo ganhou comparações a James Brown – e bem que ele fazia por elas. Até finalmente “rebentar” aos olhos do grande público, lutou no conflito armado de 56 no Canal do Suez, mudou-se para Harlem, em Nova Iorque, ficou amigo de Tim Maia e acabou por ser deportado de volta ao Brasil por se envolver em tráfico de droga. 

Quem o visse pela primeira vez no ginásio do Maracanãzinho em 1970, a cantar em palco com os Trio Ternura, não imaginaria as curvas e contracurvas que o tinham levado até ali. Enorme, com uma frondosa afro, de camisa aberta e um sol colorido desenhado no peito, Tony cantou “BR-3” à frente de todo o Brasil (tratava-se da 5ª edição do Festival Internacional da Canção) e, quiçá, do mundo. A sua ginga e voz poderosa tomaram o público de assalto e Tornado seria mesmo nomeado vencedor dessa competição, onde também disputavam o primeiro lugar nomes como Elis Regina e Vinícius de Moraes. 

“BR-3”, o disco, saiu um ano depois disto, ainda na senda do sucesso que foi cultivando desde o festival, e é uma alegre e pujante compilação de canções de amor e libertação. Uma combinação explosiva do salero latino com a sensualidade do funk vindo dos EUA, que muito ganha com a poesia bonita tão típica da música feita no Brasil (“Há um foguete/ Rasgando o céu, cruzando o espaço/ E um Jesus Cristo feito em aço/ Crucificado outra vez”, in BR-3). Ele entra de mansinho com “Juízo Final”( viva as canções com sopros!) e “Não Lhe Quero Mais”, até dar o salto com “Dei a Partida”, canção que podia ser o próprio Brown a cantar, caso dominasse o português. Uma das várias que ele podia ter cantado, na verdade: veja-se a gingona “Me Libertei” ou a “Jornaleiro”, que até daqueles guinchos ‘jamesbrownianos’ tem. 

Além do relevante papel de Tornado na afirmação dos direitos dos negros no Brasil e da sua posição enquanto feroz opositor da Ditadura Militar – em 71, por exemplo, invadiu um concerto de Elis Regina, que cantava “Black Is Beautiful” (dos irmão Valle), com o punho fechado no ar, o símbolo “Black Power” -, Tony é a prova viva de que há mais no Brasil para lá dos tocadores de violão com coração partido. Que há outras coisas além da batucada e da cuíca, do samba e da MPB. Tornado, como Gerson King Combo, são uma boa amostra de como o funk feito no Brasil (que não tem nada a ver com o lixo que hoje se ouve em todo o lado) é algo de especial, merecedor de atenção – um pouco como o movimento disco, que também tem manifestações muito interessantes do lado de lá do Atlântico. 

Infelizmente, a carreira musical de Tony Tornado apenas rendeu mais um disco, “Tony Tornado” (72) – que é igualmente excelente (oiçam a “Pode Crer, Amizade”, pelo menos) -, muito por culpa da sua intervenção social. A dada altura foi aconselhado a exilar-se, por ter a vida em risco, e isso levou a fazer um périplo por todos os países alinhados com a URSS: do Uruguai à Coreia do Norte, passando por Cuba e mesmo a cidade de Moscovo. Quando regressou ao Brasil, reza a lenda, beijou o chão. O seu futuro passaria pela representação, tornando-se ator em inúmeras produções da Globo (Roque Santeiro incluído). Perdeu-se um músico de fibra, ganhou-se um canastrão. A vida nem sempre é justa. Que o diga a carreira musical de Tony. 

Ah, e já agora: BR-3 é o nome de uma das mais icónicas auto-estradas do Brasil, que junta Brasília ao Rio de Janeiro.     


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