terça-feira, 29 de novembro de 2022

Bob Marley – Exodus (1977)

 


Depois de o terem tentado matar, no final de 1976, Marley foge da Jamaica e refugia-se em Londres, onde grava talvez o melhor disco da sua incrível carreira.

Em Dezembro de 1976, um grupo de bandidos entrou na casa de Bob Marley, na Jamaica, e desatou aos tiros. O músico foi atingido, assim como a sua mulher, Rita, que apesar de ter levado com uma bala na cabeça acabaria por recuperar totalmente. Nada foi roubado: era uma simples tentativa de assassinato do maior símbolo internacional da Jamaica. Depois de se refugiar na casa de Chris Blackwell, patrão da Island Records e seu amigo, Marley desceu a Kingston poucos dias depois do tiroteio, para participar no concerto One Smile, apesar de toda a gente lhe dizer para não o fazer. Para o cantor, esta poderia ser a última vez que tocava no seu país: no início de Janeiro estava já em Londres, depois de uma breve passagem pelas Bahamas. Não sabia, nessa altura, se alguma vez voltaria.

Começava assim 1977, um ano que por inúmeras razões seria marcante para Bob Marley. Foi um homem aliviado mas preocupado que chegou a Londres numa manhã fria. A capital britânica era uma espécie de segunda casa para Marley. Havia gravado vários discos aí, tinha feito várias digressões e havia uma forte comunidade jamaicana e caribenha, que o ajudava a não ter tantas saudades de casa. Pouco tempo depois começou a chegar a sua entourage: a banda, a mulher Rita, alguns colaboradores mais próximos. De tal maneira que até a sua amante, a Miss Jamaica e Miss Mundo, Cindy Breakespeare, estava em Londres, num apartamento discreto. Sem planos, Marley rapidamente se ajustou a uma nova rotina em Londres. Acordar tarde, comer, jogar futebol, fumar toneladas de erva, tocar música o resto do dia e, de vez em quando, um salto aos bares.

A tentativa de assassinato e o novo cenário despertaram em Marley uma fúria criativa. No meio da encruzilhada, atirou-se à música. Com a banda a viver na mesma casa, o trabalho foi intenso e feliz. Para além das músicas que já trazia consigo, estava numa fase muito rica em termos de escrita, e rapidamente tinha material para mais do que um disco. Esse ano em Londres, na verdade, daria origem a dois álbuns, que cimentariam a reputação de Marley enquanto estrela mundial de massas: Exodus, editado logo em 77, e Kaya, no ano seguinte.

Na verdade, Marley e os seus Wailers não sabiam se estavam a fazer um ou dois discos. Foram escrevendo, ensaiando e gravando tudo junto. Depois, na hora de escolher, primeiro saiu Exodus, mais “tradicional” e rootsy; e depois Kaya, um álbum mais leve e mais “pop”, sendo a casa de “Is this love”, “Sun is shining” e “Satisfy my soul”, por exemplo.

Exodus, por outro lado, é talvez o disco mais forte e coeso de toda a discografia de Marley. Extraordinariamente bem gravado, com uma banda mais unida que nunca, pega no conceito bíblico do Êxodo para, de forma apenas indirecta, falar desse outro êxodo, o de um homem obrigado a fugir do seu país. Apesar de tudo, o músico não queria mexer demasiado no atentado contra a sua vida. Não só estava genuinamente magoado por alguém da sua terra o querer matar como não havia ainda processado tudo o que se havia passado. Teriamos de esperar pelo igualmente magnífico Survival, de 1979, para referências mais explícitas a esse acontecimento, nomeadamente em “Ambush in the night”.

A grande força de Exodus está no magnífico equilíbrio do seu conteúdo, uma verdadeira demonstração dos argumentos que fizeram de Marley a primeira mega-estrela mundial vinda do terceiro mundo: as pérolas pop de “Three little birds” ou “Waiting in vain” e os clássicos reggae “Jamming”, “Natural Mystic”, “One Love/People get ready” ou o próprio “Exodus”. O segredo, como sempre, tem pouco de secreto: está no material, nas músicas e na entrega com que os músicos se expressam.

Exodus foi um grande sucesso comercial, chegando a disco de ouro em Inglaterra, nos Estados Unidos e Canadá. Basta dizer que é o disco que mais temas contribui para a esmagadora colectânea Legend, sucesso de vendas até hoje.

Esse ano de 1977 foi marcante não apenas pela edição de Exodus e pela gravação de Kaya. Foi durante essa estadia em Londres que tomou contacto com a cena punk local, que abraçou depois de uma primeira reacção conservadora contra aqueles brancos que não sabiam tocar (chegando mesmo a gravar para Exodus o tema “Punky Reggae Party”). Foi nessa altura que foi concebido Damian Marley, filho de Bob e de Cindy Breakespeare; e foi também nesse período que o músico contraiu, a jogar futebol no parque, a lesão no pé que, quatro anos mais tarde, viria a dar origem à sua morte, aos 36 anos. Essa lesão, numa das “peladinhas” no parque de Battersea, impediu Marley e os Wailers de promoverem devidamente o sucesso comercial de Exodus. Na verdade, o grupo estava exactamente no ponto certo para finalmente conquistar o mundo, mas até a digressão americana teve de ser cancelada. Perante o conselho médico de que Marley devia amputar o dedo do pé para se livrar do problema, ele recusou, por dois motivos bem diferentes: por um lado, acreditou num médico rastafari jamaicano que não defendia essa solução; por outro, isso significava que teria de deixar de jogar futebol, uma das suas grandes paixões.

1977 marcaria a vida e a morte de Bob Marley. Ainda em Londres, foi visitado por representantes musculados dos dois partidos políticos jamaicanos, cuja luta violenta tinha estado na origem do atentado à sua vida (embora nunca tenha sido efectivamente provado qual dos lados). No dia em que Marley gravava o vídeo de “Is this love”, uma sala recuada estava cheia de gangsters que se odiavam, e que tinham vindo a Londres para convencer o músico de que seria seguro voltar à Jamaica e participar no concerto One Love. Marley cedeu e, em Abril de 1978, tocou no estádio nacional de Kingston, levando a palco os líderes rivais dos dois partidos: Michael Manley e Edward Seaga, com Marley no meio, foram quase obrigados a apertar a mão um do outro, num acto simbólico (infelizmente apenas simbólico) de reconciliação nacional e de fim da violência.

Estava na hora de voltar a casa.


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