A eternidade em duas faces da mesma rodela! Poucos anos antes da sua morte, e apenas ao seu segundo e tardio disco, Cartola ganhou o céu. Talvez já o houvesse conquistado antes, mas aconteceu que com ele pôde perpetuar a sua arte e a sua imagem, permanecendo no exato espaço onde ainda hoje se encontra: na janela da sua modesta casa, juntamente com Dona Zica, sua mulher.
Tudo é icónico no segundo disco de Cartola. Tudo! O som meio roufenho dos primeiros momentos alicerçam a casa nostálgica onde cabem todas as suas doze canções, cada uma do seu jeito. Algumas em embalo dolente e sofrido, outras mexendo com o corpo de quem as ouve. Como se estivessem, todas elas, à beira de um qualquer grande e belo abismo, mesmo que banhado pelo sofrimento, pela dor, angústia e outros sentimentos afins. É também mais um exemplo de um tipo de obra que já não se usa, que já não se faz, que já não existe. Fixou-se no seu tempo, mas é, mesmo assim, retrato e moldura por onde podemos espreitar. Também por isso, Cartola é um documento precioso, tão respeitável quanto belo. O que nele se registou foi a história de quem o cantou, mas também a história (ou parte dela) dos cariocas bons de samba. Cartola foi pedreiro, como foi compositor. Foi boémio e pobre, mas tremendo no génio. A riqueza não cabe apenas nos bolsos. Nos de Cartola, não existiu. A sua fortuna, de tão generosa, repartiu-a connosco. Não a quis para si. Hoje é de todos.
O clássico “O Mundo é um Moinho” passou pelos ouvidos de todo o mundo brasileiro e será difícil não reconhecer naquele conselho cantado, aquilo que verdadeiramente é: uma lição de vida. Será certo que foi escrito para a sua cunhada, tornada prostituta pelas agruras passadas em vida? Talvez. Mas aqueles versos que dizem “Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és” fazem crer que sim. É esse o tema de abertura do álbum, mas os clássicos não se esgotam nesses primeiros quatro minutos de música. “Preciso Me Encontrar” é outro que viverá para sempre. Tantos já o cantaram depois de Cartola lhe ter dado voz, mas a versão do mestre encerra um não sei quê distintivo, que consola ao mesmo tempo que aflige e entristece. Estes dois temas (“O Mundo é um Moinho” e “Preciso Me Encontrar”) bastariam para que ouvíssemos hoje esse disco de meados dos anos setenta. No entanto, outras dez faixas esperam por nós há décadas, pacientemente, revelando dores de cotovelo, mensagens de carinho matrimonial, lamentos, saudades e sempre uma estranha sensação de perda sentimental. Mas não se pense que Cartola seja um disco de lágrima fácil. Nada disso. É, isso sim e também, uma encenação de resistência, um testemunho de sobrevivência, um momento de rara e cativante formosura.
Cartola é um dos discos mais importantes da música popular brasileira. Foi destacado por dezenas de críticos e conhecedores que o colocaram num muito honroso oitavo lugar, deixando outros noventa e dois álbuns atrás de si. É curioso notar que Cartola gravou-o aos sessenta e sete anos de idade. Dois anos antes, havia registado o seu primeiro trabalho, também homónimo, tendo vindo a falecer a trinta de novembro de 1980. Não viveu para perceber a importância do que fizera, é um facto, mas pode ser que Dona Zica, sua amada esposa, lhe tenha dado essa boa nova, em 2003, quando a ele se juntou e onde estarão (quem sabe?) numa qualquer janela do tempo, olhando e sorrindo um para o outro, sussurrando sambas de amor eterno.
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