quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Fausto – Por Este Rio Acima (1982)


 

A epopeia dos descobrimentos portugueses, à boleia de Fernão Mendes Pinto, num dos discos mais colossais que este país viu nascer.

Chegado ao final dos anos 70, Fausto Bordalo Dias já vinha com cinco discos editados em apenas uma década. Esse caminho, como o de outros, começou no pessoal, afirmou-se no político (por exemplo com P’ró que Der e Vier e Um Beco Com Saída, de 1974 e 1975, respectivamente) e foi-se estendendo ao sabor da vida. Que Fausto era um excelente criador de canções pessoais de amor já estava provado, bastando para tal escutar Madrugada dos Trapeiros (1977) ou Histórias de Viageiros (1979) mas na sua mente inquieta havia um outro tema que o apaixonava então, e o atiraria para longe da pura cantiga de intervenção: a epopeia dos descobrimentos portugueses.

Aquele que nos parece agora um tema óbvio não o era necessariamente nessa altura, com toda a reacção anti-colonial do pós-25 de Abril. Um homem de esquerda, companheiro de Zeca e de tantos outros, teria de ter muito cuidado, ou muita inteligência, ao narrar a maior saga colectiva do povo português. Em Histórias de Viageiros, com uma capa de imediato ilustrativa da navegação portuguesa, o conceito vai sendo testado e esse namoro vai sendo feito quase por carta: “Peregrinações” é uma declaração de intenções, enquanto “A Nau Catrineta” é realmente um ensaio geral para o que viria a seguir, até pela orquestração escolhida.

O grande salto, para uma verdadeira e longa epopeia musical sobre o tema, estava ao virar da esquina. Pegando na “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, Fausto encontrara o fio condutor para falar dos descobrimentos, acompanhando as aventuras e desventuras do cronista para nos levar numa viagem de ida e volta ao Oriente.

E o que nos dá este disco? Tão só a mais ambiciosa obra da música portuguesa, e uma que não fica aquém dos altos objectivos traçados para si mesma.

Por Este Rio Acima arranca com o instrumental “É o Mar que nos Chama”, como que um hipnotismo que seduz o aventureiro a fazer-se ao mar. O chamamento é respondido de imediato com a extraordinária “O barco vai de saída“, talvez a música mais conhecida da carreira de Fausto, impregnada do entusiasmo da partida, em busca de aventuras e riqueza. Há medo, sim, mas a pátria é pobre e não lhe enche a barriga, pelo que entre o sonho e a fome a escolha é bastante óbvia. Esse tema serve de porta de entrada e é uma boa ilustração do que podemos esperar: uma orgia de instrumentos e pormenores, com um ritmo popular movido a adufes e outros instrumentos de percussão tradicionais.

Logo de seguida, “Porque Não me Vês” é plácida e acústica, com um fraseado de guitarra que nos remete para o Oriente, com direito a tablas indianas e tudo. Esta é, aliás, uma das grandes riquezas deste fenomenal disco: se um português da província, que se calhar nem tinha visto o mar, pode entrar num barco e ir cruzar o mundo até à Índia, a crónica musical tem de ter naturalmente estes elementos. Fausto cruza, assim, de forma inacreditavelmente sugestiva e harmoniosa os temas musicais mais etnográficos de Portugal (os adufes, os paus do minho, os bombos de Lavacolhos, a viola braguesa, entre tantos outros), com insinuações rítmicas africanas e orientais, dando-nos assim uma mistura musical que ilustra o exotismo e surpresa que o herói de tal viagem experimentara a cada momento.

No conteúdo, Fausto não cai em extremos fáceis. Não há crítica simplista ao espírito explorador e colonial dos viajantes, muitas vezes pobres coitados sem eira nem beira, nem há uma glorificação da expansão da fé ou dos limites do mundo conhecido dos europeus. Há um olhar muito completo, complexo e empático, que dá tanta atenção ao desejo humano da descoberta como ao sentimento ainda mais humano do medo, perante o desconhecido do imenso mar e de povos  que são um mistério, e como tal um potencial perigo. E há ainda lugar para o olhar pessoal, o da saudade, tanto das pessoas a quem se ama e que ficavam meses e anos para trás, e até da própria pátria, que pode ser pobre e injusta, mas ao menos fala a nossa língua e não abana com as ondas.

Musicalmente, este exercício beneficia de uma sequência extraordinária, que vai alternando estilos e linguagens. Ao folclore de “De um Miserável Naufrágio que Passámos” segue-se a elegância e beleza acústica de “Como um Sonho Acordado”. Se há momentos quase de música de câmara, logo levamos com um corridinho, saltamos de seguida para o fado e cheiramos os sons exóticos da Ásia, em momentos que podem ser de calma reflexão quando aportamos numa ilha, ou movimentados em obediência ao mar, que pode ser plácido ou revolto.

Este disco é um verdadeiro caldeirão de estilos e de instrumentos, servido por uma extensa equipa de perto de 40 músicos, todos eles mestres da sua arte, desde o magnífico coro feminino aos tocadores de triângulo ou caixas de ritmos populares. O resultado é um delírio, uma verdadeira epopeia musical e lírica, que mais ninguém, na verdade, conseguiu atingir na música portuguesa.

Por Este Rio Acima foi um sucesso de vendas e de airplay, com “O Barco Vai de Saída”, “A Guerra é a Guerra” ou “Navegar, Navegar” a ficarem impregnadas no nosso consciente colectivo até hoje. Para isso contribuiu também a muito cuidada edição do duplo LP, com uma extraordinária capa colorida a lembrar-nos os exercícios do rock progressivo e o magnífico libreto que acompanhava o disco, com as letras, ilustrações de época e os trechos da “Peregrinação” que haviam inspirado cada canção. Uma curiosidade: foi dos primeiros discos portugueses a conhecer edição no então revolucionário formato do CD, logo em 1984!

Este foi o primeiro tomo de um trabalho que levou quase 30 anos a terminar. Em 1994 saiu o segundo volume desta epopeia portuguesa, com o também excelente Crónicas da Terra Ardente, ficando o conjunto completo com o menos inspirado Em Busca das Montanhas Azuis, de 2011.

Tanto tempo depois, Por Este Rio Acima continua o que sempre foi, uma obra absolutamente incrível de um músico genial, no seu topo de forma. Um retrato de um Portugal que é feito de todas estas coisas: pobreza e ambição, coragem e medo, desejo de aventura e ânsia da sua casa, empatia e violência, fé e ganância. E é possivelmente o único disco que pode disputar com Cantigas do Maio, do mestre José Afonso, o topo da tabela dos melhores discos portugueses de sempre.


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