domingo, 27 de novembro de 2022

José Afonso – Baladas e Canções (1964)


 

E assim começou, pé ante pé, devagarinho, em busca de um som e de um conteúdo que lhe parecesse seu, onde se sentisse em casa. A pele do artista mudou, pouco depois, como sabemos. Mas Baladas e Canções tem os seus particulares encantos, mesmo que distante dos brilhos alcançados nos tempos futuros.

Bem sabemos que quando se jogam sementes à terra, nem sempre delas vem a melhor colheita. Nunca nada está garantido. Mas a essência desse grão que se espalha vai, por vezes, maturando, ganhando formas diversas, corpo e flores diferentes das dos tempos inaugurais. Outros aromas, outros perfumes, ora mais líricos, ora mais combativos. Quando se dá o primeiro passo, estamos sempre no limiar de qualquer coisa que tem, por força de razões vindouras, muito de desconhecido, de impensável, de ponto de interrogação. O que aconteceu com o primeiro longa duração de Zeca Afonso (perdão, do Dr. José Afonso, uma vez que assim estão redigidos título e nome na capa do álbum) terá sido mais ou menos o que referimos aqui. Tão somente isso. Uma voz e o seu princípio. Estávamos no ano de 1964, em plenos Estúdios do Monte da Virgem, no Porto, casa da RTP, no norte do país. E, para que conste, o disco ganha vida e sai a público pela Discoteca Santo António, Ofir, uma pequena editora da cidade invicta.

Baladas e Canções não é, no entanto, apenas o testemunho de uma voz ligada às tradições universitárias dos fados de Coimbra. Nele já habita um certo esgar de mudança e também daquilo que poderíamos chamar (não fossem, por vezes, as palavras tão voluntariosas e enganosas) de modernidade. O termo Baladas já dita algum distanciamento dos fados do Mondego que, esses sim, marcavam de maneira indelével alguns dos singles e EPs anteriores à estreia de 1964. No entanto, se quisermos usar da justiça que a obra do autor em questão exige, Baladas e Canções está longe de ser um disco histórico. Bastante, até. Ele valerá, não apenas por tudo o que foi dito até à presente frase, mas por se prestar a desafios que se concretizarão mais tarde. Importa, ainda assim, referir alguns dos temas gravados nessas duas metades escuras de vinil. No primeiro lado, encontramos “Canção Longe”, tema popular dos Açores adaptado pelo músico, mas também “Na Fonte Está Lianor”, sobretudo por via da riqueza do texto camoniano, repleto do tradicional e distante lastro da coita de antigos tempos literários. No outro lado do LP, “Altos Castelos” e “Canto da Primavera”, este último um bonito instrumental, o segundo a fazer parte dos doze temas do disco. A par das canções referidas, a final “Ronda dos Paisanos”, canção profundamente antimilitarista e de tom irónico, ganha algum peso e destaque, sobretudo se tivermos presente que Zeca Afonso foi o último classificado do seu curso militar, em Mafra, quando ali teve de cumprir o serviço militar obrigatório. Esse derradeiro lugar obtido, que certamente representou, para si mesmo, uma classificação de muita honra, deveu-se, em larga escala, ao seu residual aprumo para as coisas das fardas, armas e balofas artes da tropa.

Como primeiro texto deste nosso longo e importante Especial Altamont, as linhas sobre o presente Baladas e Canções, de tão incipientes e frágeis, não farão justiça, estamos em crer, a um trabalho que, mesmo assim, não colocou Zeca Afonso nos píncaros da nossa música popular portuguesa. Esses momentos áureos chegarão um pouco mais tarde, como bem sabemos. No entanto, revisitar o berço desse filho que cresceu para lutas futuras, não deixa de ser agradável e reconfortante. Como dizíamos, é o toque de saída, o esboço inaugural de um quadro que acabaria por ser pintado noutros tons e com outras cores. Apenas uma sombra do que se tornou luz.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

ROCK AOR - 956 (Italy) - What I Need

  País: Itália Estilo: Hard Rock, Melodic Rock Ano: 2001 Tracklist: 01. Lazy Man 02. No Name 03. I Don't Want You 04. What I Need 05. Sn...