domingo, 27 de novembro de 2022

José Afonso – Cantares do Andarilho (1968)


O segundo disco de Zeca Afonso, Cantares do Andarilho, é o alicerce para uma nova música popular portuguesa. E quando as raízes são fortes e profundas, a possibilidade de crescimento agiganta-se.

Em 1968, o professor José Afonso tinha 39 anos, um disco de temas inspirados na tradição coimbrã na sacola e um desejo inesgotável de criar música. Em 1964 tinha editado o disco Baladas e Canções, já depois de ter lançado as duas canções que o separavam do joio do baladeiro-estudante: “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro”.

Nesses dois temas, o doutor em Ciências Histórico-Filosóficas exibia uma vontade de cortar com a tradição baladeira, buscando inspiração na canção folclórica portuguesa e na poesia contemporânea de produção nacional, velando os ataques à condição político-social em Portugal. E por muito importante que “Os Vampiros” se tenham imposto muito mais no imaginário popular – ainda a expressão “eles comem tudo” é usada amiúde para ataques políticos -, a verdade é que “Menino do Bairro Negro” continua a ser um dos mais belos temas do cancioneiro de José Afonso.

Acompanhado apenas à guitarra por Rui Pato, e numa estrutura harmónica de dois acordes – à boa maneira popular -, Zeca cria uma intricada métrica que não obedece à estrutura musical clássica (que o próprio desconhecia), mas que complementa de forma perfeita o acompanhamento instrumental. E a utilização do falsete “zequiano” sublima todo o trabalho instrumental e poético. “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro” desbravavam o caminho para aquilo que viriam a ser as cantigas de andarilho.

Chegado o ano de 1968, a música portuguesa nunca mais seria a mesma. O advento de Cantares do Andarilho marca o concretizar do projecto sonhado por Lopes-Graça que imaginava uma nova canção de índole nacional alicerçada na tradição popular, mas inevitavelmente moderna e bela. Neste seu segundo disco, José Afonso reúne a tradição oral portuguesa com a estética da canção coimbrã para criar algo inovador, único e fundador.

Sabemos que o músico ouviu vezes e vezes as recolhas levadas a cabo por Michel Giacometti, o etnólogo mais importante da segunda metade do século XX nacional, e essas audições inspiraram-no a gravar “Saudadinha” (tradição açoriana), “Resineiro Engraçado” e “Senhora do Almortão” (das Beiras), que pouco se afastam da tradição com que são cantadas localmente, apesar do seu cunho indelevelmente moderno. E um sinal dessa modernidade surge precisamente na canção “Senhora do Almortão”, habitualmente tocada apenas com adufes. Rui Pato resolve a questão utilizando a guitarra como um instrumento de percussão, batendo no tampo da sua viola ao mesmo tempo que marca o acompanhamento harmónico com a mão esquerda.

A inspiração tradicional não se esgota, no entanto, nestas três canções. “Natal dos Simples” é uma reinvenção das Janeiras que recorre às onomatopeias e interjeições que viriam a ser uma marca indissociável da canção de José Afonso; “Balada do Sino” é a típica canção de roda, quase medieval. Já “Canção de Embalar” vai buscar também a inspiração à canção medieval para criar uma das mais belas músicas do cancioneiro popular e canção que terá embalado milhares de crianças neste país (e que irei impingir a todos os cachopos que me passem pelos braços).

Há ainda as canções de intervenção que neste registo são duas: “O Cavaleiro e o Anjo” e a excepcional “Vejam Bem”. A primeira é uma clara crítica à polícia política que chega sempre “de botas cardadas” que “levantam pó” e sob o manto da noite. Do outro lado está o “estrangeiro” que é convidado a resistir ao salazarismo – “pega nas armas / vem batalhar” -, ao mesmo tempo que o aconselham a resguardar-se da PIDE enquanto a resistência se organiza – “dorme ao relento/ até eu voltar”.

“Vejam Bem” é igualmente uma canção de resistência repleta de imagens fortes, como aquele que “anda pela noite de breu à procura/ e não há quem lhe queira valer” ou a praça de gente madura que não vem levantar o homem do chão. Nesta canção, Zeca agiganta-se ao cantar, como quem aponta um dedo em riste à falta de humanidade, ao desprezo pelo outro, à indiferença a que aqueles que lutam por um bem comum tantas vezes são votados.

E apesar da qualidade inegável dos temas referidos até ao momento, são outros dois que se destacam pela influência que tiveram na música que se viria a fazer em Portugal na década seguinte. “Cantares do Andarilho” e “Chamaram-me Cigano” são canções que devem tanto ao fado de Coimbra como à tradição oral portuguesas e que estão na origem daquilo que ficou conhecido como a nova canção popular portuguesa. Sem elas os rumos de FaustoSérgio Godinho e José Mário Branco teriam sido muito diferentes. E todos sabemos o quão lamentável isso teria sido.

Cantares do Andarilho não é tão desafiante como Traz Outro Amigo Também, tão imaginativo como Venham Mais Cinco, ou tão genial como Cantigas do Maio, mas é o alicerce da nova música popular portuguesa. E as raízes são fortes e profundas.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Brigg - Brigg (1973)

  Brigg foi um trio de Folk/psicodelico formado por Rusty Foulke (guitarras, vocal), Jeff Willoughby (baixo, percussão, piano, flauta, vocal...