quarta-feira, 23 de novembro de 2022

José Afonso – Com as Minhas Tamanquinhas (1976)


Com as Minhas Tamanquinhas troca a poesia cuidada dos discos anteriores por um estilo panfletário mas imaginativo. Uma crónica vivida da revolução de Abril. Primeiro andamento: o sonho do PREC. Segundo andamento: o fim da festa.

O primeiro disco de José Afonso gravado a seguir ao 25 de Abril foi o Coro dos Tribunais, de 1974. Acontece que todas as suas canções foram escritas ainda durante a ditadura, pelo que há uma continuidade na linguagem: velada, metafórica, surrealizante. Só no álbum seguinte, Com as Minhas Tamanquinhas, de 1976, em que todas as canções foram compostas já sem o gume da censura, é que pôde repensar o seu estilo. E a decisão de Zeca foi a mesma de todos os outros cantautores engajados de então: trocar a liberdade poética de outrora por um estilo cru e directo, colocando os objectivos políticos – de denúncia e intervenção – à frente de qualquer ideal estético (não era de todo o momento para o ascetismo da arte pela arte).

Nesse sentido, o estilo panfletário de Com as Minhas Tamanquinhas, quase um diário sobre o frenesim do PREC e o balde de água fria do 25 de Novembro (“depois da festa, menina”, ironiza na canção-título), foi a evolução mais natural do mundo. Quem quiser compreender o que foi a loucura sonhadora do Verão Quente – e Zeca viveu-o intensamente, percorrendo o país de lés-a-lés, tanto que nem gravou nada em 1975 -, tem neste disco um precioso documento histórico. Vamos mais longe: por mais que Zeca tente ser útil e propagandístico há sempre uma graça e uma inteligência a elevar tudo para outro patamar.

Do ponto de vista musical é um disco exemplar. “Índios de Meia-Praia” e “O Homem da Gaita” têm melodias inspiradíssimas que todos os portugueses de bem sabem trautear. “Fantoches de Kissinger” e a própria canção-título são de uma riqueza rítmica sem precedentes, o auge do legado africano. “Alípio de Freitas”, com as suas guitarras convictas, de quem sabe perfeitamente para onde vai, tem um travo épico, consentâneo com a homenagem ao valente padre transmontano, então preso pela ditadura militar brasileira.

Apesar de toda a sua inegável frescura houve críticos que então consideraram Com as Minhas Tamanquinhas como o pior disco do ano (!), o que só pode ser compreendido à luz de preconceitos ideológicos (sempre maus conselheiros em matéria de gosto). Um disco que tem o melodismo de “Teresa Torga” ou o fulgor rítmico de “Como se Faz um Canalha”, entre tantas outras pérolas, não merece tão grosseira desconsideração.

Com as Minhas Tamanquinhas tem uma curiosidade: conta com a participação de Quim Barreiros. Conta-se que Zeca, no estúdio em Campolide, já de madrugada, se lembra de lhe ligar a convidá-lo, à procura do seu travo bem minhoto. O mais conhecido bigode da música portuguesa diz logo que sim, emprestando o seu acordeão nortenho a “Chula da Póvoa” e a “O Homem da Gaita”. Houve quem quisesse excluí-lo da ficha técnica, por considerar o seu nome desprestigiante. Preconceitos tolos a que Zeca não cedeu. José Afonso esteve sempre rodeado dos melhores músicos. Quim Barreiros é um deles.


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