O primeiro disco de Zeca após o 25 de Abril é um dos seus melhores, mesmo que tenha resistido à tentação de, a quente, servir de crónica aos dias da Revolução.
E, finalmente, a Revolução. Depois de tantas décadas de luta e de ditadura, finalmente cai o regime naquele emocionante e inesquecível 25 de Abril de 1974. Os meses que se seguiram foram um turbilhão popular, de manifestações e desfiles na rua, de festas espontâneas um pouco por todo o lado, regozijo e reacção, esperança e dúvida. Zeca Afonso, então já o maior símbolo do músico de intervenção (embora tenha sido sempre muito mais do que isso), vai nessa enxurrada, tocando por aqui e por ali, na estrada. Em associações (de pescadores ou mineiros, por exemplo), por todo o país, numa ânsia de finalmente cantar em liberdade.
No entanto, esses eram tempos de incerteza, também para José Afonso. Como se depois de ter algo pelo qual tanto se ansiara não se soubesse o que fazer com isso, Zeca interrogava-se sobre qual o seu papel, e até qual o papel da música nesta nova fase da vida portuguesa. Tudo podia mudar; certamente que a música não deveria ficar igual…
É no meio desta confusão que Zeca vai para Londres, no final de Novembro, para gravar o seu disco seguinte, Coro dos Tribunais. Para a capital inglesa segue uma comitiva coesa, um colectivo de choque e de afectos: Zeca, Fausto Bordalo Dias (que ficaria encarregue dos arranjos e da direcção musical), Vitorino, Carlos Alberto Moniz, Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Yório Gonçalves e Michel Delaporte.
Curiosamente, ao contrário do que aconteceu com Sérgio Godinho – que logo em 1974 edita À Queima-Roupa, um disco altamente político que servia de fresca crónica da Revolução – José Afonso resistiu à tentação de, em cima do momento, criar novas canções sobre o que se estava a passar nas ruas e nas fábricas. Talvez por estar a passar por essa introspecção acerca do seu papel e do valor da música na construção de uma nova realidade, optou por manter o alinhamento previsto, gravando apenas canções compostas antes do 25 de Abril, muitas delas em 1973. Chegou mesmo a sentir um raro bloqueio de escritor, sem saber como poderia a sua arte reflectir com verdade a mudança política e social que acabara de acontecer. Além disso, sentia que as músicas que tinha alinhavadas mantinham a sua validade mesmo após a queda da ditadura.
Ouvindo hoje os 11 temas de Coro dos Tribunais, não temos como discordar. Três dos temas (duas versões da faixa-título e “Eu marchava de dia e de noite”) são baseadas na peça “A excepção e a regra”, de Bertolt Brecht, que Zeca musicara. Curiosamente, o tom político acaba por se adaptar perfeitamente ao momento do país, ainda que as palavras tivessem sido escritas no final dos anos 20.
Mas, musicalmente, o grande destaque do disco é a afirmação da crescente influência das sonoridades africanas na obra de José Afonso. Não era a primeira vez que tal acontecia, mas talvez aqui haja mais exemplos e uma maior interligação com os outros temas, com o músico a ir buscar fundo as suas memórias e experiências de Moçambique. O clássico “O que Faz Falta” – que Zeca mais tarde viria a considerar algo paternalista – “Lá no Xepangara” e “Ailé, ailé”, esta última dedicada ao movimento de libertação da Frelimo, são os grande exemplos desta africanidade de Coro dos Tribunais.
E se temos o Zeca político e o Zeca africano, temos também o humor do Zeca, o Zeca que namora com o surrealismo, de que é exemplo a excelente “Tenho um primo convexo” ou “Não seremos pais incógnitos”.
De salientar ainda a belíssima “A Presença das Formigas”, que pega novamente na figura de um bicho pelo qual Zeca tinha grande simpatia, pelo seu incansável trabalho colectivo. Tema político? Tema de amor? Tema surrealizante? Um pouco de tudo isto, muito bem servido pelos arranjos subtis de Fausto.
Não deixa de ser estranho que o primeiro disco de José Afonso após a queda da ditadura não tenha pelo menos uma canção de júbilo dedicada a esse momento refundador. Mas Zeca, se era um idealista, era também um pessimista. Sabia que os desafios não haviam terminado com a queda de Marcello Caetano e companhia. A luta continuaria e ele, de uma forma de que ele ainda não estava seguro, estaria lá para a fazer, e para a cantar.
No conjunto global da obra de José Afonso, Coro dos Tribunais é, sem dúvida, um dos seus melhores discos. Sabendo bem do peso que tem esta afirmação, não é preciso dizer mais nada.
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