sexta-feira, 25 de novembro de 2022

José Afonso – Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972)


 

A casa de “A Morte Saiu à Rua” é um tratado de como ser político sem ser panfletário, num disco que continua fresco, lírico e incontornável.

Como suceder a um colosso como Cantigas do Maio? Essa que seria uma questão quase intransponível para qualquer músico, não parecia trazer qualquer peso para José Afonso, o nosso Zeca. Sempre em movimento, sempre a compor, sempre a tocar, perdia pouco tempo a planear a sua carreira ou a gizar a estratégia para os anos seguintes.

O disco seguinte, Eu Vou Ser Como a Toupeira, traria várias novidades. Em primeiro lugar, há uma mudança relevante na gravação. Deixa o mago de estúdio José Mário Branco; depois de ter trabalhado no famoso estúdio francês de Hérouville, Zeca procurou inspiração ibérica, sobretudo na Galiza, região que adorava e que ainda hoje lhe presta emocionadas e emocionantes homenagens; e o planeamento rigoroso da gravação perde espaço para algo mais espontâneo.

Nessa altura, Zeca vinha de muitos quilómetros pela estrada, a dar concertos aqui e ali, muitas vezes em palcos praticamente improvisados. Aí, chegava ele e um guitarrista, e nada mais. O que se acrescentava, muitas vezes, limitava-se a mais vozes e uma ou outra guitarra, num ambiente de improviso acalorado, em que a mensagem se sobrepunha à qualidade de execução e às condições técnicas do “espectáculo”.

Quando avança para a gravação de Eu Vou Ser Como a Toupeira, vai com isto em mente. É um colectivo que parte para Madrid, com destino aos estúdios Cellada. A estadia foi mais prolongada, mas a gravação levou pouco mais de uma semana. Antes disso, uns dias na Fuzeta, no Algarve, para os ensaios, aos quais Zeca se furtava muitas vezes, preferindo levar os companheiros a correr ou a praticar judo na praia, ou a ver um filme. Se Zeca gostava de tocar, não gostava muito de ensaiar, e muito menos de gravar. José Jorge Letria, companheiro dessa e de outras aventuras, dizia mesmo que, para Zeca, “gravar era um martírio”, e só acontecia para cumprir o contrato que tinha com Arnaldo Trindade. Abençoado contrato que o obrigava a fazer discos, dizemos nós.

A comitiva era numerosa e nem todos tinham um papel atribuído: José Jorge Letria, Carlos Alberto Moniz e a esposa deste, Maria do Amparo (igualmente cantora), José NizaTeresa Silva Carvalho e um grupo de músicos galegos, como Benedicto (do grupo Voces Ceibes) e Carlos Villa, entre outros. As músicas saíram de Portugal razoavelmente planeadas, mas não totalmente ensaiadas nem sequer fechadas na sua forma final. Zeca parecia, assim, querer manter em aberto o clima de espontaneidade de que tanto gostava na estrada, bem como do carácter colectivo dessas incursões. Tal como na política, para Zeca as coisas tinham mais significado se feitas em conjunto.

O resultado de todo este enquadramento é um disco menos “monumental” que Cantigas do Maio e com um menor cuidado e unidade nos arranjos. O que se ganha em troca é uma maior espontaneidade e uma maior simplicidade na gravação e na entrega dos temas. Não que a qualidade tenha baixado. As músicas continuavam a ser muito fortes e Zeca & companhia continuavam à procura de ideias inovadoras (quando ouviu José Niza comer um pedaço de presunto Zeca não desistiu enquanto não gravou esse som de mastigação como elemento de percussão). Mas aquilo que, com José Mário, era alvo de maturação prolongada e analítica, no estúdio de Madrid era mais espontâneo. Também os efeitos “especiais” da espartana “O Avô Cavernoso” mostram essa exploração e a sempre existente inovação.

Este disco é a casa de alguns dos temas mais marcantes da carreira do Zeca. Acima de todos, aquele que abre o disco, “A Morte Saiu à Rua”. Uma homenagem pouco velada ao pintor e militante anti-fascista Dias Coelho, barbaramente assassinado pela PIDE em 1961. Mas também a delícia melódica de “No Comboio Descendente”, com base num poema de Fernando Pessoa. Ou na faixa-título, em que Zeca se inspira no exemplo da toupeira, que no escuro conspira e esburaca, fora da vista mas sempre a trabalhar.

E se aqui há, naturalmente, política, há também o resto do Zeca. O Zeca popular, enamorado com a música tradicional portuguesa e pintalgada com os sons e ritmos africanos de que tanto gostava. Nesse sentido, “Ó Ti Alves” tanto nos leva a uma manhã fria nos Açores como aos cânticos despidos de África. “Ó Minha Amora Madura” é um tema tradicional, ao qual Zeca não acrescenta qualquer inovação mas entrega com total respeito e até amor. E até temas mais bonitos e aparentemente plácidos nos trazem a mistura entre a lírica e o conteúdo político velado, como em “Fui à Beira do Mar” – “Desde então a bater/no meu peito em segredo/sinto uma voz a dizer/teima, teima sem medo” – ou em “Por Trás Daquela Janela”, dedicado a Alfredo Matos, antifascista do Barreiro que se encontrava preso.

Não nos podemos esquecer que, se José Afonso estava então em liberdade (e isso mudaria em breve), vivíamos ainda nos tempos da ditadura, e os seus passos eram vigiados de perto. A saída para gravar em Madrid – com Espanha e França a servirem de escape às grandes limitações que as autoridades lhe estavam a impor no que tocava a concertos em Portugal –  tem de ser comunicada às autoridades e até a lista e a letra das músicas que seria gravada tem de passar pela censura. Havia um truque habitual: enviar para os censores um conjunto alargado de temas, metendo lá alguns que eram destinados a atrair as atenções da PIDE, e censurados à partida, deixando passar o resto. O grande problema estava com “A Morte Saiu à Rua”, que foi de imediato riscada. À boa maneira portuguesa, o assunto resolveu-se à mesa: José Niza convida o coimbrão Pedro Feytor Pinto – ligado à censura – para almoçar, e é ali firmado um acordo de cavalheiros que liberta a música para ser gravada. O clássico podia nascer.

Eu Vou Ser Como a Toupeira é um dos discos da “fase imperial” de José Afonso, na qual só editava ouro. Na carreira de outro artista, seria certamente o ponto maior; na de Zeca, é “mais um dia no escritório”, ou seja, mais um de vários enormes discos que nos deixou.


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