Fura, Fura ocupa um lugar singular na discografia de José Afonso, talvez por ser o mais dramatúrgico dos seus álbuns: oito dos doze temas provêm de colaborações com o teatro.
Estamos em 1978 e Zeca anda desanimado. O sonho que acalentara – de uma irmandade sem opressores, nem oprimidos – ruiu com estrondo. Após a chamada normalização democrática, a sua voz tornara-se incómoda. A televisão e as rádios começam a varrê-lo do seu espaço de antena. A sua própria popularidade enquanto artista declina: muitos fãs de outrora não se revêm na sua radicalização política, deixando de comprar os discos (Zeca sempre foi vítima deste mal entendido: a confusão do estético com o ideológico). Como se tudo isto não bastasse, começa a sentir um cansaço físico que não sabe explicar (os primeiros sintomas de uma doença fatal, que só anos mais tarde seria diagnosticada). Desmoralizado, chega a pensar em desistir das cantorias…
É aqui que entra em cena o dramaturgo Helder Costa, velho amigo do Zeca das andanças coimbrãs. Lança-lhe um repto para musicar a nova peça d’A Barraca: “O Zé do Telhado”. É difícil para Zeca dizer que não. Afinal de contas, sempre teve uma relação estreita com o teatro. Em 1966, quando vivia em Moçambique, musicara a peça de Brecht “A Excepção e a Regra”. Eu Vou Ser Como a Toupeira, Coro dos Tribunais e Enquanto Há Força albergam os preciosos frutos dessa colaboração.
O convite de Helder Costa chega em boa hora, abanando-o da melancolia em que estava enfiado. Ainda para mais, identifica-se com a sensibilidade social de Zé do Telhado, o nosso Robin dos Bosques (nos estatutos que redigiu para a sua quadrilha, determina que um décimo dos proveitos dos furtos seja doado aos mais pobres!). No contexto histórico onde a trama acontece – a revolta de Maria da Fonte contra o governo de Costa Cabral – encontra paralelismos com a actualidade de então, no rescaldo da primeira intervenção do FMI em Portugal: “uma corte corrupta que segue cegamente as ordens lá de fora…”
Todo o lado A de Fura Fura é dedicado a canções de “O Zé do Telhado”, quase sempre pedindo emprestado textos populares. Para o ajudar na direcção musical Zeca convida os Trovante. Três canções contam com os seus bonitos arranjos: a dançante “As Sete Mulheres do Minho”, a burlesca “O Cabral Fugiu para Espanha” e a visionária “De Quem Foi a Traição” (os Gaiteiros de Lisboa seriam mais tarde influenciados pelo arrojo experimental deste último tema).
Os Trovante eram, então, ilustres desconhecidos, pelo que a associação com José Afonso deu um importante impulso à sua carreira. Só que qualquer coisa não correu bem na parceria: a meio dos trabalhos Zeca pede a Júlio Pereira para assumir a produção. Talvez os Trovante, muito novos então, tivessem dificuldade no diálogo com um músico tão heterodoxo como era José Afonso, que não sabia escrever música, nem sequer apresentar cifras com os acordes. Zeca tinha tudo na cabeça, não só a melodia da voz, como também muitas das outras ideias, mas era o diabo para conseguir explicar o que bailava na sua fervilhante imaginação. A trovadoresca “Na Catedral de Lisboa” e os faduscos “Quem Diz que é Pela Rainha” e “Quanto é Doce” – com António Chaínho na guitarra portuguesa – já são dirigidos por Júlio Pereira.
O lado B é mais disperso, acomodando temas com diferentes origens. “Senhora que o Velho” e a canção-título também provêm de uma peça teatral, “A Guerra do Alecrim e da Manjerona”, comédia de enganos levada a cena pel’ “A Comuna”. O texto de António José da Silva, uma sátira à sociedade portuguesa setecentista – o que a Inquisição nunca perdoou, queimando-a na fogueira -, encontrou acolhimento no espírito crítico de José Afonso.
“De Não Saber o Que Me Espera” e “De Sal de Linguagem Feita”, ambas lindas de morrer, foram escritas em 1973 na prisão de Caxias, contemporâneas, portanto, de muitos dos temas de Venham Mais Cinco.
“Achegate a Mim, Maruxa”, canção a cappella com letra roubada ao cancioneiro popular galego, foi escrita em Vigo em 1978. Júlio Pereira conta que tiveram que voltar à pressa ao hotel, para buscar o gravador, porque a sua melodia aparecera de rompante ao mestre Zeca, como quem é fulminado por um raio.
“Não é Meu Bem” é uma deliciosa lenga-lenga, com um ritmo sincopado viciante. No refrão, de travo africano, o groove ainda estremece mais o guarda-louças, deixando a faiança em cacos.
Fura Fura é o mais dramatúrgico dos discos do Zeca, onde oito dos doze temas provêm de colaborações com o teatro. Um afastamento em relação à estética panfletária pura e dura de Com as Minhas Tamanquinhas e Enquanto Há Força. Zeca, portanto, fazendo o que mais gosta: navegar em águas novas. O resultado é o esperado: doze canções exemplares.
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