sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Bloom – Drafty Moon (2021)


 

O novo disco de Bloom é pop mas denso, groovy mas sombrio, teatral mas verdadeiro. Um diálogo enternecedor entre o discípulo JP e o mestre Bowie.

Em 2017, JP Simões encontra uma forma ardilosa de matar Chico Buarque: renasce como Nicholas Bloom, cantando em inglês, empurrando-se para referências distantes da MPB. Em boa hora o faz: Tremble Like a Flower, com os seus dedilhados doces à Nick Drake, é de uma tocante beleza poética.

Quatro anos volvidos, Bloom regressa com  Drafty Moon, em tudo uma reacção ao álbum anterior. Onde Tremble Like a Flower era bucólico e introspectivo, aceitando com resignação a tristeza do mundo, Drafty Moon é eléctrico e teatral, gritando com o irresponsável firmamento, dançando com os lascivos demónios.

As oito canções são sólidas – sobreviveriam ao mais austero dos arranjos. Mas Bloom anda guloso, quer muito fermento no pão. Miguel Nicolau obedece: produção densa, com muitas camadas, descobrindo-se sempre algo de novo a cada audição. A farinha cresce e ainda bem.

O tema-título, que abre o disco, define o tom soturno, quase apocalíptico, que atravessa Drafty Moon. O saxofone dolente de “Pull Yourself Together” dorme vestido, demasiado letárgico para enfiar o pijama. “There’s Something About Tomorrow” tem qualquer coisa de disco sound macabro, mortos-vivos dançando debaixo da bola de espelhos, braços gangrenados caídos na pista. A spoken word fantasmagórica de “Bleeding All Over” é filme de terror manhoso, tipo o “Thriller” do Michael Jackson mas sem rapazinhos.

Nos seus falsos brilhos e hedonismo sombrio, escondendo o vazio debaixo de um verniz de luxúria, há qualquer coisa de cabaret berlinense dos anos 20: excessivo, perverso, amoral. Um regresso aos Belle Chase Hotel, portanto. Acontece que JP tem agora mais trinta anos em cima. Deus é magnânimo: no mesmo dia em que criou as rugas, inventou a profundidade emocional.

Nesta exploração da decadência, há ecos de Bryan Ferry, de Scott Walker e, acima de tudo, de David Bowie. O espectro já estava presente no primeiro disco de Bloom, aliás: “tremble like a flower” é um verso do clássico “Let’s Dance”. Em Drafty Moon, Bloom vai, porém, mais longe, entabulando uma longa conversa com o seu mestre.

Se Bowie é convidado, nunca o é como pastiche, mas apenas como circunscrita citação. De trechos melódicos (“Moonage Daydream” em “Pull Yourself Together”; “Sufragette City” em “Bad For Business”) e também na voz gélida e distópica. Essa é, aliás, uma vantagem de Bloom cantar em inglês: liberta JP para o puro som, sem ter que se preocupar com o peso das palavras (esmagador na língua portuguesa). Em Drafty Moon, JP brinca com as possibilidades da sua voz como nunca antes o fizera.

Da mesma forma, os sintetizadores pré-históricos à Brian Eno evocam a trilogia de Berlim. E pedaços do seu imaginário – os extraterrestres, as estações de comboio, a liberdade “wild as the wind” – são açambarcados. O talento pede emprestado, o génio rouba.

A canção que encerra o disco, “People That Never Dance”, é uma delícia. Uma miúda num parque, rodeada de estátuas tristes, pensa que aqueles homens sábios, hoje feitos de pedra, foram pessoas bisonhas que nunca dançaram, e que se hoje está só, com o cabelo dançando ao vento, é justamente para evitar esses homúnculos que nunca dançam.

Dancemos até cair que depois levantamo-nos.



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