terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Burial – Untrue (2007)


 

O segundo tomo de Burial, Untrue, é considerado por muitos como o melhor álbum de música electrónica do século XXI: opressivo e cinemático, sujo e comovente.

O house nasceu em Chicago e o techno em Detroit, mas o bicho da electrónica é irrequieto, sempre a dançar, sempre de um lado para o outro: mal deu por ele, já estava do outro lado do oceano, numa rave londrina, em cima de uma coluna. Nu.

A variante inglesa era, porém, diferente, não pelo chá e pelos scones, mas pelo guisado multicultural da grande Londres. As batidas quadradas quatro no chão – tum, tum, tum, tum – foram dando lugar aos breakbeats: fragmentados, nervosos, imprevisíveis. O baixo? Cada vez mais grave e escuro e jamaicano, fazendo estremecer o guarda-loiça da avó. Os samples atmosféricos de filmes manhosos? Imprescindíveis.

E assim a música de dança inglesa foi evoluindo: uma da manhã, hardcore; duas da manhã, jungle; três da manhã, drum & bass; quatro da manhã, 2-step; cinco da manhã, grime e o dubstep do nosso Burial (que torrente febril de inovação!).

Para quem acha que a música electrónica é coisa fria e sem alma, respondemos-lhes com apenas seis letras: u-n-t-r-u-e! O segundo álbum do londrino Burial, e indisputável obra-prima, comove blocos de betão. O que é estranho, quando um homem se põe a pensar. Tudo é feito na frieza de um computador, cortando e colando samples, manipulando as suas frequências. Acontece que é um homem que comanda a máquina, com um coração ferido a palpitar, a mágoa entornando-se sobre os microchips, a saudade esborratando o processador. Por isso, Untrue é mais blues do que pista de dança, mais soul do que euforia, mais fado do que MDMA. Antes de Untrue o dubstep era gélido, brutamontes e maquinal; depois de Untrue: envolvente, delicado e profundamente humano.

A forma como Burial trata a voz é o seu principal segredo. A matéria-prima é banal, pequenos samples de R&B, por vezes provindos de brincadeiras de amadores. A magia vem do intrincado corte e cola dos samples, e da sua impiedosa mutilação – brincando com a velocidade, encharcando-os em reverb – até tudo ser um lamento fantasmagórico, uma sereia agonizando fora de água, um eco distante de uma dor antiga.

As cordas lúgubres tinham tudo para dar errado: muitas vezes samples de vídeo-jogos, com tudo o que isso implica de emoção fabricada. Mas Burial é velhaco, cortando a limpeza excessiva dos sintetizadores com um baixo profundo e um fundo sujíssimo: o grão do vinil gasto, o ruído da estática, a chuva a cair… O agridoce final é perfeito.

As batidas quebradas são orgânicas porque imprecisas, humanas porque imperfeitas. As soluções são, mais uma vez, desconcertantes: onde um comum mortal ouve uma arma a carregar num jogo de consola, Burial encontra a textura e o ritmo para um beat! O que lhe falta em bom senso, sobeja-lhe em bom gosto, é o que nos vale.

Untrue é muito mais do que música, é poesia e cinema. O seu tom opressivo e noctívago transporta-nos para a grande cidade às cinco da manhã, os solitários de todo o mundo aquecendo as mãos frias no café do McDonalds (o copo de plástico morno como metáfora suprema de desenraizamento). Caminhamos sobre a rua de néon, um homem de barba desgrenhada dormindo numa cama de cartão, um anjo macambúzio seguindo os nossos passos, ensopando a nossa alma…

Untrue é também um lamento sobre a morte da cultura rave, o segundo summer of love a deixar o seu lastro de desilusão (as promessas de unidade que ficaram por cumprir, as saudades de um passado que Burial nunca viveu). Untrue é, assim, uma aparição, uma rave antiga sussurrando ao longe, a euforia dos anos de ouro sobrevivendo como espectro distante. Mais valia que a felicidade de outrora nunca tivesse acontecido. Assim, persegue-nos para sempre, como peganhenta assombração.


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