sábado, 24 de dezembro de 2022

Caetano Veloso – Meu Coco (2021)


 

Será possível que o mundo inteiro possa caber dentro da rodela de um disco? Sim, pode. Sobretudo quando esse mundo tão particular existe no coco de um grande criador. Meu Coco, meu mundo. Eis o antes, o agora e o depois no disco mais autobiográfico e autorreferencial de toda a discografia de Caetano Veloso!

Há muito que Caetano Veloso não dava notícias frescas. Há quase uma década que não nos abraçava de novo. Pensava-se, até, que talvez já não voltasse a fazê-lo. Entretanto, o mundo fechou-se, fechou-nos em nossas casas e, talvez por isso, a urgência de voltar a criar veio ao de cima, sobrepondo-se à espuma dos dias. Nos últimos anos, Caetano voltou às composições, ganhando de novo o prazer de tornar pública a sua voz lúcida, ativa e bem firme no propósito de criar canções que retratam, ao mesmo tempo, a sua vida e o modo como vive o mundo atual. No entanto, o futuro também espreita em Meu Coco. Um futuro necessariamente melhor e mais humano. Assim sendo, Meu Coco pode ser visto, por exemplo, como uma espécie de livro (uma autobiografia lírica) que Livro não foi, embora esse disco de 1997 dê, em certa medida, um ar da sua graça no álbum surgido agora. Esse e tantos outros. Se tudo isto parece um pouco ambicioso e até (quem sabe?) confuso, então você não entende nada, se é que nos fazemos entender… Entremos, pois, na cabeça delirante de um exímio criador da música popular brasileira. Devagarinho, como convém quando se sabe que com Caetano tudo é divino maravilhoso!

Meu Coco traz doze canções, embora três delas já fossem conhecidas antes mesmo do dia 21 de outubro, data em que o álbum estreou nos ares da net. O que propomos agora é um passeio por todas elas para que possam, talvez, fazer luz sobre este recente trabalho de Caetano, ao mesmo tempo denso, escuro, experimentalista, mas também cintilante, aberto e clássico.

“Meu Coco” é o tema que dá título ao disco e também o que o inicia. Começa por ser uma canção onde as referências a nomes do universo brasileiro são mais do que muitas. Essa é, aliás, uma constante em todo o álbum. Caetano virou, sobretudo neste seu longa duração, um name dropper. Já o havia feito antes, noutros trabalhos, mas nunca da forma torrencial como acontece agora. Quanto ao tema “Meu Coco”, ele pretende homenagear, entre outros, o seu grande e velho amigo Jorge Mautner, que um dia disse que “ou o Brasil se brasilifica, ou vira nazista”. O Brasil atual espelha a crua realidade da frase transcrita, e essa constatação poderá ter sido a pedra de toque do tema, assim como de outros momentos do álbum. Há nesta faixa algum do experimentalismo sempre tão presente em Caetano (basta lembrar o radical álbum Araçá Azul, de 1973, ou mesmo o não tão radical Jóia, de 1975), entre tantos outros dos seus momentos criativos. “Naras, Bethânias e Elis” são o lado bom que se empenha na luta contra a outra face do Brasil, aquela onde proliferam “cãibras, furúnculos, ínguas”. No entanto, “Meu Coco” é também um tema que reverencia João Gilberto, o nome mais importante na formação artística do baiano de Santo Amaro da Purificação. “João Gilberto falou / E no meu coco ficou / Quem é, quem és e quem sou?”. Se foi com João que tudo começou a girar na cabeça de Caetano, então faz mesmo sentido que o tema que abre Meu Coco reserve a primazia para o homem que nos fotografou a todos, através do seu canto, na sua Rolleiflex.

O segundo tema do álbum é, na nossa opinião, o seu mais supremo momento lírico. Uma canção do outro mundo, e não apenas por ter a palavra Líbano no título. “Ciclâmen do Líbano” é um tema perfeito, eleva-nos na sua melodia, ao mesmo tempo bela e tensa, sobretudo quando entram as cordas, lá para o meio da canção. O dedo de Jaques Morelenbaum na regência orquestral é superlativo. O tema, mais uma vez, recua a memórias de um amor vivido e a uma cor tantas vezes mencionada por Rodrigo, irmão de Caetano: ciclâmen. Para quem conhece bem a obra de Caetano, será bem possível pensar, por vezes, em “Pássaro Proibido”, principalmente pela maneira de dizer / cantar o texto em causa. O tema surgiu no álbum da irmã Bethânia, acabando por lhe dar título. Trata-se, como se disse, de uma canção de amor, e a forma quase lânguida como é feita tem algo de erótico, de sussurro ao ouvido. Curiosa ainda é a maneira como a palavra “Líbano” é cantada. A demora nas sílabas causa um bonito efeito luxuriante. Como se as fonéticas de Líbano e de libido estivessem am concordância. “Perna, braço, artelhos, / Enfim, cada membro / Aninha-se – e espelhos / Dão-se entre os dois Vênus / De montes vermelhos / E vales amenos.” Versos supremos, não concordam?

O primeiro single do disco foi a muito tensa e escura “Anjos Tronchos”, e também nela, se escutada com a devida atenção, podemos encontrar ecos de “Vaca Profana”, não no conteúdo (como é óbvio), mas no clima geral da composição. Parecem ambas canções ameaçadoras. “Anjos Tronchos” só poderia ser um tema surgido da mente de Caetano Veloso. O apuro, o sentido sempre virado para a atualidade, o “coco” como antena parabólica em que nada escapa é terreno fértil para o baiano. Sempre foi. Basta lembrar “Fora da Ordem”, por exemplo, canção do álbum Circuladô, de 1991. “Anjos Tronchos” é a nova “Fora da Ordem”, toldada agora pela contextualização dos novos tempos, os tempos em que os algoritmos e as realidades virtuais operacionalizam as nossas vidas, fazendo-nos prisioneiros inadvertidos da tecnologia que temos à mão. Somos seres humanos com cada vez menos humanidade. Como se o destino vertiginoso nos obrigasse a sermos, num futuro próximo e possível, seres isentos dessa nossa natureza humana, seres em trânsito para uma outra realidade, a tecnológica. No entanto, num mundo que caminha nesse sentido, ainda há quem, usando essa mesma tecnologia, surpreenda o planeta com a capacidade de produzir arte: “E enquanto nós nos perguntamos do início / Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão”. O “Vale do Silício” conduziu-nos a um cenário extremo, a um cenário de trevas, fechado, pouco humanizante quando nos empurra para a via do diálogo sintético e virtual. E, portanto, a realidade densa em que vivemos virtualmente (o virtual ganha força e ímpeto ao ponto de ser a nova realidade) é também aquela que, parecendo dar-nos asa, nos prende a um vazio terrível. Caetano é um ser político, tal como se mostra em “Anjos Tronchos”. Mas não apenas nesse tema. No seguinte, se tivermos em conta a ordem das canções, a luta é outra, mais interna, referente ao seu Brasil, ao Brasil de Bolsonaro. É uma canção de combate, uma forma de levantar a bandeira à moda tropicalista. Lembrem-se dos versos de “Geleia Geral”, de Gilberto Gil, e vejam como tudo bate certo: “Um poeta desfolha a bandeira / E a manhã tropical se inicia”. “Não Vou Deixar” é o título da canção em causa. Ela é, ao mesmo tempo, denunciadora da situação real do Brasil, mas também uma voz crente e anunciadora de um novo tempo, de uma nova manhã. Talvez seja a canção mais fácil de gostar numa primeira escuta. Caetano já afirmou ser a sua preferida. Se Meu Coco tiver um hit, será este.

Porém, com o passar dos tempos, Caetano tornou-se avô (mesmo que seja um “vovô nervoso, teimoso, manhoso”) e esse estado de graça tornou-se visível quando compôs para o seu Benjamim a canção “Autoacalanto”. Benjamim, como Caetano já referiu, tem esta estranha particularidade. “canta pra se ninar” e por isso, no último verso da canção, Caetano canta “Eu nunca tinha visto nada assim”. É um tema embrulhado em amor.

Na arte de Caetano não há impossíveis. Veja-se o caso da canção “Enzo Gabriel”. A balada decorre da ideia de Enzo Gabriel ter sido o nome mais escolhido no Brasil para batismo de milhões de brasileiros. Assim, da realidade presente, Caetano discorre sobre o futuro de todos esses Enzos, sobre que papel terão no futuro do Brasil e do Mundo. A ideia será, eventualmente, típica de quem “já cá não está para ver”, mas também de quem se preocupa com o futuro, mesmo que não com o seu. De forma não tão subtil como acontece noutros momentos do disco, Caetano evoca um dos seus primeiros temas gravados (“Coração Vagabundo”) na sua e na voz de Gal Costa, no longínquo Domingo, em 1967. Por falar em Gal, e voltando ainda a referir Gil, o tema que junta no título os nomes dos seus amigos de sempre é outro dos momentos de grande significado e beleza. “GilGal” é experimentalista, lembra os batuques que povoam Bicho (1977), assim como alguns temas de Jóia (1975) e ainda (a espaços) faz pensar em “A Voz do Morto”, sobretudo quando Caetano canta alguns dos seus heróis da música popular brasileira nos versos “Wilson Batista, Jorge Veiga, / Carlos Lyra e o imenso Milton Nascimento”. Ouçam esse momento da canção e depois façam o mesmo com “Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana” de “A Voz do Morto” e surpreendam-se. Vale bem a pena. Como também valerá ter em conta que a expressão GilGal não aparece pela primeira vez na obra de Caetano. No tema “Este Amor”, presente no disco Estrangeiro (1989), ela também surge na enigmática letra dessa canção. Para mais, Caetano encontrou-a presente no romance José e Seus Irmãos, de Thomas Mann e, naturalmente, ganhou-lhe afeição, como bem se percebe. A voz de Dora Morelenbaum acrescenta brilho ao tema, que contém apenas vozes, batuques e palmas. Rasgo de génio. Mais um.

O último terço do disco abre com “Cobre”, outro momento de exceção. É, sobretudo, uma canção de amor ao jeito do mestre baiano. A letra, lindíssima, tem momentos que apetece acompanhar, cantando (“Tua pele é o cobreado / Da Bahia de nós dois”). Deveria tornar-se um clássico, ao nível de “Você é Linda” ou “Coisa Mais Linda” por exemplo, temas do álbum Uns (1983). “Pardo”, a canção seguinte, foi escrita para Céu, mas recuperada por Caetano em boa hora. Caetano é mulato. Já o havia cantado em “Sugar Cane Fields Forever”, do disco Araçá Azul (1973), nos versos “Sou um mulato nato no sentido lato mulato democrático do litoral”. Agora repete a ideia de outra forma, evocando a memória da mãe, Dona Canô, quando se referia a um documento identificativo sobre ela própria, onde estava mencionada a sua cor de pele: parda.

Depois de duas canções ternas, surge o fado “Você-Você”, que a nosso ver é um momento que ainda estranhamos um pouco, a nota menos alta de um álbum sublime. Caetano, sobretudo quando atua em Portugal, gosta de cantar fados. Quando o faz, tenta reproduzir a nossa pronúncia, nem sempre com muito sucesso, embora nunca fique mal esse colorido. Neste tema faz o mesmo, e o resultado não nos parece muito estimável. Para mais, a voz de Carminho também se faz ouvir, e por muito que possamos gostar da fadista portuguesa, na gravação em causa as vozes talvez choquem um pouco. Não concordam na perfeição. Há qualquer coisa (não foi propositado, o uso da expressão, pode acreditar) em “Você-Você” que teima em não ser bem digerida pelos nossos ouvidos. Talvez seja uma questão de tempo. Talvez.

Quase a fechar Meu Coco, chega um samba declarado em mais um momento de partilha de nomes e de estilos da imparável música brasileira. Dos novos aos mais antigos, um pequeno mar de gente passa pelos versos de “Sem Samba Não Dá”. Que grande canção sobre a diversidade artística da melhor música popular do planeta! O tema foi feito após Pretinho da Serrinha ter questionado Caetano sobre se o novo disco teria algum samba. Em resposta, o mano Caetano compôs este novo clássico para a sua longa lista de clássicos absolutos. Daí que, antes do momento derradeiro, há que mexer as cadeiras.

“Noite de Cristal”, tema antigo de Caetano, gravado pela irmã Bethânia no disco Maria (1988), foi escolhido para encerrar o álbum. Os versos finais da canção não podem deixar de ser vistos como simbólicos, sobretudo quando a humanidade, o mundo (e o Brasil, pois claro) passam por tempos duros, ásperos e demorados. Dizem assim: “E vejo e peço dias / De outras cores, / Alegrias / Para mim / Pra o meu amor / E meus amores”. Não fosse Meu Coco um álbum onde constam preocupações para além da esfera pessoal do seu autor, talvez estes versos parecessem egocêntricos. No entanto, fechá-lo com o uso da primeira pessoa lírica reforça a ideia de que este disco é também fruto da clausura a que estamos sujeitos há já quase dois anos, onde o eu se encontrou de forma muito próxima (quase hiperfísica) consigo mesmo. O que somos nós para além do que fomos vivendo e construindo? Ter consciência disso é perceber Meu Coco. Este coco, o de Caetano, mas também, por arrastamento, o que no nosso coco pode haver dele. E assim, nunca um disco de Caetano disse tanto sobre ele e sobre nós, que o idolatramos desde sempre.


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