O álbum de estreia dos De La Soul, 3 Feet High and Rising, é a obra-maior dos chamados anos de ouro do hip-hop. Groovy, irreverente e colorido.
No final dos anos 80, em Nova Iorque, a malta da Native Tongues fartou-se da bazófia de macho alfa dominante no hip-hop – materialista, chauvinista, agressiva – e propôs uma alternativa mais construtiva. Jungle Brothers, A Tribe Called Quest, Queen Latifah e De La Soul foram os nomes mais importantes da movida e o simples facto de colaborarem entre si era um statement: uma celebração do hip-hop enquanto comunidade, por oposição aos beefs do costume. A rainha Latifah estava bem acompanhada pela inglesa Monie Love. Uma lufada de ar fresco num género onde a misoginia sempre grassou.
No lugar das correntes de ouro (e de outros sinais superficiais de status) usavam medalhões africanos ao peito. Em vez da retórica do rufia durão preferiam a folia nonsense (não se subestime o poder salvífico do sentido de humor parvo). Nunca fingiram ser quem não eram – valentões do gueto -, assumindo sem complexos a sua condição de classe média.
Acima de tudo, reclamaram para si o direito à diferença, como quem diz: não há uma mas mil formas diferentes de expressar a nossa cor da pele (e o nosso lugar na América). À semelhança do que George Clinton (Parliament, Funkadelic) fizera nos anos 70, e do que o Prince continuara nos eighties, a Native Tongues libertara o imaginário da cultura negra americana. Nenhum limite… a não ser o céu azulíssimo.
O álbum que melhor expressou este ideal foi o primeiro dos De La Soul, 3 Feet High and Rising, de ’89. A capa – com cores garridas e flores estilizadas – é, em sim, um manifesto: de festa, de diferença, de paz e amor. E ainda nem pusemos o disco a rodar…
A introdução é gozona: um concurso idiota com perguntas e respostas… idiotas. O conceito atravessa o álbum, sem nunca ser intrusivo. E com esta brincadeira os De La Soul acabaram de inventar os interlúdios brincalhões, hoje ubíquos no hip-hop (nem sempre com os melhores resultados, convenhamos).
Esta inovação formal traz para o hip-hop o direito à parvoíce, uma casca de banana estrategicamente colocada junto aos pés do pregador. Quando os Public Enemy fazem as suas acusações políticas a seriedade do tom é puritana e moralista, nem sempre há paciência que aguente. Os De La Soul também têm uma mensagem social (“Say No Go” é um tema anti-crack e “Ghetto Thang”: um retrato pungente sobre a vida nos bairros difíceis) mas o fundo leve e bem-disposto evita qualquer travo moralizador.
A música propriamente dita só assoma com “The Magic Number”, um tema groovy e divertido que irradia todas as cores vivíssimas prometidas na capa. O rap de Posdnuos e Trugoy é gentil, zero de agressividade, apenas cadência e frescura. Depressa percebemos que a toada leve e soalheira – nada nova-iorquina – atravessa todo o disco. A funky “Me Myself and I” foi um êxito comercial e um rastilho nas pistas de então. “Buddy” celebra a união Native Tongues com a participação dos Jungle Brothers e dos A Tribe Called Quest. Só grandes temas, uns atrás dos outros.
O festim de samples – colados com uma imaginação transbordante – está a cargo do mago Prince Paul. Se o groove do funk é o travo dominante (Parliament, Sly & the Family Stone, Commodores) é sempre salpicado com outros sabores (Johnny Cash, Steely Dan, Turtles), cozinha de fusão requintadíssima. Os Bomb Squad já tinham elevado o sampling à condição de arte mas o caminho dos Public Enemy era outro: o da dissonância e da violência sónica. Prince Paul demarca-se dessa estética agressiva, colorindo tudo com alegria e dança, um reflexo da sua própria personalidade bonacheirona. As cores são vivas mas a tinta é suja, incorporando com orgulho o ruído do vinil.
3 Feet High and Rising define um novo patamar de sofisticação do sampling, influenciando outras pérolas no caminho (Paul’s Boutique dos Beastie Boys é um claro herdeiro). Infelizmente foi também o canto do cisne dos chamados anos de ouro do hip-hop. Os Turtles processaram-nos pelo uso não autorizado de um sample inofensivo no interlúdio “Transmiting Live From Mars” (uma delícia, já agora). A brincadeira custou-lhes mais de um milhão de dólares. A partir daí a indústria retraiu-se. O hip-hop encontraria outras formas de se reinventar mas a nobre arte do corte e cola de centenas de samples entrou em declínio.
Com receio de novas cacetadas, o álbum não consta em nenhuma plataforma de streaming. Um bom pretexto para comprarmos a rodela em formato físico. Se há disco que merece essa honra é esta proscrita obra-prima.
A influência de 3 Feet High and Rising é ubíqua. Não há um único nome do hip-hop alternativo que não lhe deva alguma coisa: Common, Mos Def, Talib Kweli… Um lastro que chegou até ao sul profundo dos Outkast. Há sementes que germinam florestas.
Sem comentários:
Enviar um comentário