O terceiro álbum de Eminem, The Marshall Mathers LP, é a sua polémica obra-prima: provocadora, espirituosa, imaginativa.
Marshall Mathers teve uma infância pobre e conturbada (resumo Europa-América: nunca conheceu o pai, sempre às cabeçadas com a mãe). Vai saltitando de casa, mudando de escola como quem muda de camisa, para gáudio dos bullies gulosos, esfacelando a presa fácil. Na sua adolescência vive num parque de caravanas na zona mais pobre de Detroit, uma das raras famílias brancas num bairro negro. A white trash heroe is something to be…
Desde miúdo que se apaixona pelo hip-hop, a luz – ao fundo do túnel – que nunca se apaga. Detroit tem uma cena underground vibrante, célebre pelas suas battles de freestyle, onde depressa se destaca. O miúdo começa a sonhar.
Em 1996 lança Infinite, um disco competente mas pouco original, soterrado nas influências dos seus mestres (Nas à cabeça). Mathers bem faz das tripas coração para promover o álbum – percorrendo Detroit de lés-a-lés – mas não consegue vender mais do que algumas dúzias de cassetes. Hoje o LP tem um valor meramente histórico, um registo do incipiente ponto de partida (de tal forma que Eminem optou por nunca o reeditar, nem sequer nas plataformas digitais).
No ano seguinte, eureka!: encontra a sua voz própria, singularíssima. Falamos de The Slim Shady EP, onde explora um sarcasmo inconveniente e provocador à South Park, até então inédito no hip-hop (os Beastie Boys: uns meninos de coro por comparação). Pela boca do alter-ego Slim Shady, consegue finalmente expressar o que lhe vai na alma, driblando as palavras com uma rara desenvoltura. A raiva é o seu combustível: contra os dentes da pobreza, contra a sua família disfuncional, contra todos os descrentes.
O problema é que continua a não conseguir pagar a renda. Com a filha prestes a nascer é despejado, as mobílias todas penhoradas. Desesperado, participa numa battle em Los Angeles. Ganhar o prémio de quinhentos dólares é quase uma questão de sobrevivência. Fica em segundo lugar. Doeu…
Mas um olheiro leva o EP ao Dr. Dre, e o doutor mais conhecido do gangsta rap gosta muito do que ouve. Eminem assina com uma major pela primeira vez e lança – em ’99 – o seu segundo álbum, The Slim Shady LP. Dre produz os singles, elevando a música de Eminem para um novo patamar. “My Name Is” é um sucesso instantâneo.
A obra-prima chegaria, porém, no ano seguinte. The Marshall Mathers LP aprimora o humor negro – polémico e irreverente – do disco anterior. As batidas de Eminem: mais sombrias e austeras. Os beats de Dre: mais sumarentos ainda.
O contexto é, porém, diferente: depois do sucesso de The Slim Shady LP, as vinhetas sobre a pobreza trailer park deixam de fazer tanto sentido. A mira é agora apontada para outros lugares: a indignação moralista; o oportunismo dos que antes o desprezavam; a insinuação de que, no hip-hop, menos melanina implica menos autenticidade. Acontece que Eminem não é o Vanilla Ice. Tem talento, credibilidade conquistada no underground de Detroit, e, sobretudo, uma “voz” original e singular que o coloca na liga dos melhores MCs de sempre: Tupac, Biggie, Jay-Z, Nas. “I don’t do black music / I don’t do white music / I make fight music / for high school kids”, declara Eminem com propriedade.
Espreitemos, então, alguns dos temas, hoje, canónicos.
Para explodir as pistas de dança, há a orelhuda “The Real Slim Shady”, cujo baixo líquido prescrito pelo Dr. Dre provoca espasmos de êxtase no nosso córtex auditivo.
O refrão de “Stan” é melódico mas preguiçoso, decalcando a bonita “Thank You” da britânica Dido. A sua riqueza reside noutro lado, na forma exemplar com que conta uma história, usando com engenho a troca de correspondência entre um fã stalker e o seu adorado ídolo. A obsessão patológica de Stan por Eminem – veladamente homoerótica – degrada a relação com a sua companheira grávida, culminando na morte do casal. Na missiva que por fim endereça ao seu fã, o seu tom é inesperadamente terno e sensato, num contraste absoluto com o registo demente e violento que domina o álbum. É essa uma das virtudes de The Marshall Mathers LP: a capacidade que tem de justapor na mesma obra pontos de vista contraditórios. Cruel e humano. Trágico e burlesco. Imaginativo e íntimo.
“The Way I Am” é um single anti-singles, um hino de independência inegociável. O balanço sincopado das suas rimas – cuspidas com uma raiva sincera em que acreditamos – faz girar o mundo.
Na popalhuda “Kill You” Eminem viola a sua mãe (what the fuck!) com uma leveza bem disposta de desenho animado, de maneira que a ultra-violência não choca, sabe apenas a mais uma provocação do doido arlequim.
Já “Kim” – onde Eminem mata a ex-mulher (what the fuck!, parte II) – é um caso diferente. O tom sério, com Eminem aos gritos, e Kim a chorar, aterrorizada, torna a violência insuportável. As nossas reservas não são morais: um texto criativo é um texto criativo, lugar de liberdade, para além do bem e do mal. O problema é outro: sem qualquer contrapeso a mitigar a violência, a canção causa uma repulsa estética, é too much, demasiado melodramático. O único revés, cremos, num disco quase perfeito.
À primeira vista, The Marshall Mathers LP – pela sua violência politicamente incorrecta – parece herdeiro da tradição gangsta. O facto de Eminem ter sido apadrinhado pelo Dr. Dre reforça essa ideia. Acontece que não. No gangsta há uma tentativa de esconder o processo artístico, como quem diz: não estou a inventar nada, nem tenho jeito para essa coisa das palavras, estou apenas a mostrar o gueto como ele é (e como nós, rufias valentões, somos).
Ora Eminem derruba a quarta parede com estrondo, expondo o artifício criativo que está por detrás de tudo. Não quer dizer que não haja verdade, bem pelo contrário: The Marshall Mathers LP está pejado de desabafos autobiográficos, mais ou menos distorcidos, mais ou menos exagerados. Mais importante ainda, há uma verdade emocional palpável a cada verso: a dor, o ressentimento, o amor e ódio entrelaçados. Mas a verdade é apenas um instrumento e uma matéria-prima, sempre subordinada à criação, à imaginação poética, ao sentido de humor delirante. Emimem não tenta esconder o seu virtuosismo verbal, usa e abusa dele com um prazer indisfarçável. Mais: questiona os limites da liberdade artística, ultrapassando, ufano, novas fronteiras de deselegância. Já dizia o mestre Baudelaire: “o que há de atraente no mau gosto é o prazer aristocrático que sentimos em chocar os outros.”
The Marshall Mathers LP gerou muita controvérsia na altura mas teve um sucesso retumbante, liderando o top de vendas, vendendo 11 milhões de exemplares nos Estados Unidos e 21 milhões no mundo inteiro. Estamos em crer que hoje, volvidas duas décadas, o fenómeno Eminem não seria possível. O policiamento moral da linguagem tornou-se entretanto hegemónico. Marshall Mathers seria hoje cancelado, varrido do espaço público. Com o pretexto de se combater a intolerância estamos hoje mais intolerantes. Querido mundo, o nosso Eminem tem uma mensagem para ti: get aware, wake up, get a sense of humor…
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