Paula
Sérgio Godinho
Paula, vem cá, os teus olhos verdes
Guarda-os na viola com quem vou partir
Rugas a mais te percorrem quando
Pões a memória no que está pra vir
Sentas-te e à volta as laranjas abrem
Portas que dão para a tua boca
E a vida é minha e a tristeza é tua
cantas comigo e a canção sai rouca
Trazes em ti mais do que te dei
Trazes em ti mais do que te dei
Paula até já
Paula até já
Paula, vem cá, os teus olhos verdes
Guarda-os na viola com quem vou partir
Rugas a mais te percorrem quando
Pões a memória no que está pra vir
Vais à janela, estou em baixo a olhar
Ergues a mão por cima do rosto
Fazes de conta que não és daqui
Ficas no corpo com o meu fogo posto
Trazes em ti mais do que te dei
Trazes em ti mais do que te dei
Paula até já
Paula até já
Pequenos Delírios Domésticos
Sérgio Godinho
Lá em casa, minha amiga
(deixe que lhe diga)
ele abre a boca, eu dá-me o sono
só gostava que nos visse
aquilo é uma molenguice
aquilo anda muito morno
eu bem tento pôrao lume
mas depois, como é costume
vai-se o fogo e vai-se o gaz
volta-se ao mesmo marasmo
Eu bem ponho lingerie, oh oui
dou-me ares de Mata-Hari, vê-de
faço pratos e petiscos
noz-moscada, corro riscos
faço riscos na parede
a prisão é na cozinha
e a capela no chuveiro
e na cama há um canteiro
onde as flores não têm luz nem cor
Se eu lhe contar um segredo
(a medo...)
fico mais desabafada
no outro dia ouvi a chave
a rodar lá pelas nove
e fingi-me desmaiada
vê-me uma reles beijoca
se isso é que é o boca-a-boca
não vou querer que mais ninguém me salve
É certo que me distraio, saio
como p´ra longe do mundo
subo à torre, toco o sino
e num belo submarino
vou até bater no fundo
depois venho respirar, o ar
que me coube nesta vida
volto ao ponto de partida
são quase horas de ele querer jantar
Ai, amiga, se eu chegasse (ah, se...)
ao momento da verdade
dizia-lhe assim à bruta:
"Mata-ratos e cicuta
tomarás em quantidade"
a hora do telejornal
era o momento ideal
tanta guerra e tanta fome
e o meu crimezinho incólume
Deixava-o morto e sentado, de lado
com as mãos ainda ocupadas
numa o controlo remoto
e na outra o totoloto
em ambos as unhas cravadas
ia comprar espumante, ante
a surpresa do merceeiro
que malicioso e matreiro
perguntaria: "a quem vai brindar?"
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