sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Hawkwind – In Search of Space (1971)


O segundo dos Hawkwind, In Search of Space, é o disco-manifesto que apresenta o space rock. Psicadelismo lento, pesado e hipnótico. Como uma nave gigante à deriva no espaço.

Se o psicadelismo teve o seu auge em ’66-’67, ele não morreu com o White Album, longe disso. Da mesma maneira, a contracultura hippie/freak não se extinguiu na data proclamada pelos críticos (’69), sobrevivendo mesmo depois das tragédias Manson/Altamont. No Reino Unido, a cena underground de Ladbroke Grove continuou activa no início dos anos 70: acid heads de cabelos compridos vivendo em casas ocupadas, com uma dieta à base de seitan e LSD, tocando em bandas de rock ou escrevendo em jornais underground, quase sempre à pala, pois a utilidade de uma nota de dez libras era, em primeiro lugar, a de servir como mortalha para um joint.

Foi neste enclave de Notting Hill que nasceram os Hawkwind em ’69 e que por lá continuaram pelos seventies afora. Reflectindo a amargura da nova década, os Hawkwind eram também hippies mais cínicos, trocando a ingenuidade da “paz e do amor” por uma hostilidade aberta contra a autoridade (o “namoro” com a polícia era constante). A sua estética space rock, incipiente ainda no álbum homónimo de ’70, mas já totalmente formada no disco-manifesto In Search of Space (’71), reflecte também – na sua violência e paranóia apocalíptica – os novos ares do tempo. A metáfora da trip do psicadelismo original permanece mas a viagem agora é outra: espacial e distópica.

Hendrix e os Floyd já haviam explorado pontualmente esta sensibilidade sci-fi mas os Hawkwind colocam-na bem no âmago da sua sensibilidade. A alunagem da Apolo 11 em ’69 espicaçou a sua imaginação. A viagem para fora (espaço) e a viagem para dentro (ácidos) convocam o mesmo insano foguetão. O escritor de ficção científica Michael Moorcock vive também em Ladbroke Grove e depressa nasce uma fértil colaboração entre ambos. Moorcock é um dos representantes da “nova vaga” da ficção científica. Onde a literatura clássica recorria a um escapismo inofensivo, a new wave prefere questionar as sociedades contemporâneas, imaginando as suas derradeiras consequências (os ataques à liberdade, a destruição da natureza, o diabo a sete). A ficção científica como arma política, portanto. O alinhamento ideológico com os Hawkwind é total.

O que define o space rock não é, porém, o conteúdo das letras mas sim o próprio som futurista e atmosférico. É essa a primeira virtude de In Search of Space: conseguir evocar uma ambiência sci-fi com a linguagem abstracta da música. Os sintetizadores, e demais maquinetas de manipulação do som, são usados como pura textura, evocando os “bips” de painéis de controlo de naves espaciais. Essa é a parte “fácil”: construir este imaginário com tecnologias “modernaças”. Mas os Hawkwind vão mais longe, criando o mesmo efeito cinematográfico com os instrumentos de sempre do rock. Quando no épico de abertura ” You Shouldn’t Do That” se repete durante quase um quarto de hora o mesmo propulsivo riff de guitarra, convoca-se com engenho a monotonia de uma viagem espacial.

É neste feroz minimalismo que mora a modernidade dos Hawkwind mas também a sua solidão. O prog britânico, então no seu auge, rege-se pelo princípio oposto: quanto mais, melhor. Só na Alemanha, com o chamado krautrock, é que floresce uma sensibilidade semelhante. Os Hawkwind têm contactos com algumas bandas kraut, partilhando a editora com os Can, roubando o baixista aos Amon Duul II, influenciando o despojamento motorik dos Neu!. No Reino Unido caminham, porém, sozinhos.

Nem sempre Nik Turner adere à economia estética dos seus camaradas, com o seu saxofone-alto wah-wah soprando, por vezes, notas a mais. Mesmo assim, não é um virtuoso, é apenas irrequieto, abalroando os colegas com a sua impaciência. De qualquer forma, o líder Dave Broke vai conseguindo conter os excessos do colega (o seu jazz cósmico à Sun Ra enriquecendo a paleta de texturas).

O psicadelismo interplanetário dos Hawkwind, induzindo transe pela hipnótica repetição (cânticos tribais incluídos) tem outra diferença em relação à primeira vaga do summer of love: é mais pesado, o elo de ligação entre o blues rock e o heavy metal. Os riffs do clássico “Master of the Universe” são de uma violência bárbara, apenas superados à época pelos lamacentos Black Sabbath. O stoner rock dos anos 90 (Kyuss, Sleep e companhia) iria encontrar muita da sua inspiração neste heavy psych da primeira metade dos anos 70.

Não é só na parcimónia que os Hawkwind se demarcam do prog. É também no humor e na loucura, recusando qualquer pretensão de respeitabilidade pseudo-erudita. Com o poeta Robert Calvert lendo trechos de poesia em palco, havia esse risco. Acontece que Calvert, não sendo um hippie, é mais chanfrado do que os Hawkwind todos juntos, sempre no limbo entre a excentricidade e a doença mental. A “mãe-Terra” Miss Stacia é outra peça-chave do demente circo galáctico: dançando de peito descoberto e corpo pintado, brincando com as luzes líquidas, soprando oníricas bolas de sabão. Estes artefactos multimédia teriam, porventura, pouco impacto se todos – banda e público – não tivessem ambos completamente pedrados. Pouco serviria, aliás, tentar ir sóbrio para o concerto: tudo à volta está contaminado com ácidos (triparás, quer queiras, quer não).

Enquanto os críticos (essa raça!) se entretinham a anunciar a morte da contracultura, os Hawkwind levavam o underground até onde este nunca antes tinha chegado: à província, aos lugarejos, a todo o lado. A digressão pelo país é constante, muitas vezes em concertos à borla, ao serviço das mais diversas causas sociais. Nunca houve uma banda mais indiferente à carreira e ao dinheiro do que os generosos Hawkwind. Nos festivais gratuitos no meio do nada (raves antes das raves) não existe backstage. Artistas e público são uma única tribo. Desadaptados, marginais e freaks de todo o mundo, uni-vos. A nave loucura vai descolar outra vez.


 

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