Roberto Carlos fez, em 1967, um dos melhores discos de rock’n’roll que o Brasil já ouviu, Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, que serviu de trilha sonora para o filme homônimo de Roberto Farias. Por diversos motivos, além do repertório brilhante (“Eu Sou Terrível”, “Por Isso Corro Demais”, “Você Não Serve Pra Mim”, a primeira canção pop brasileira com uso ostensivo do pedal de guitarra fuzz, entre outras), o disco soava como um ritual de passagem da adolescência musical do cantor para a vida adulta. Foi um dos raros discos feitos sem a colaboração de “seu amigo…Eraaasmo Carlos”, o primeiro em que assinou sozinho os créditos de suas canções, rompendo temporariamente o acordo de assinatura conjunta com Erasmo e, aliás, produto justamente de um rompimento pessoal e profissional com ele em função de briga por espaço no programa de TV Jovem Guarda. Enfim, agruras do mesquinho star system e dores do crescimento.
Por falar em Jovem Guarda, Em Ritmo de Aventura, não seria exagero dizer, é também o canto de cisne deste golpe publicitário de Carlos Imperial (um simpático vigarista da cena pop da época que teria muito a ensinar a Malcolm McLaren) que virou estilo musical. Claro que os tiques e sestros do movimento ainda estão lá, mas se faz ouvir uma sonoridade um pouco mais densa e uma queda para o rock’n’roll mais duro que vinha da Inglaterra e dos EUA em detrimento da influência do iê-iê-iê italiano.
Pois bem, parecia que Roberto resolvera sair da adolescência musical da Jovem Guarda e iniciar vida de jovem adulto, coisa que Erasmo, também resolver fazer, se aproximando tanto da MPB quanto do rock estrangeiro. Enquanto, como se viu depois, Roberto ia em direção ao pop romântico, Erasmo caia num rock mais experimental, abrindo-se tanto para a música brasileira, como para o rock psicodélico.
O que interessa, contudo, é que entre 1968 e 1973, os dois tiveram momentos remarcáveis nesta transição. São desta época, sem dúvida, antes de virar este cadáver insuportável que assombra a programação da Rede Globo, os 4 ou 5 LPs mais impressionantes de Roberto, começando com O Inimitável, de 1968. São também deste período os melhores LPs de Erasmo, começando com Os Tremendões, de 1969, que antecipa o excepcional Carlos, Erasmo sob diversos ângulos, mas também os excelentes Sonhos e Memórias (72) e 1990 – Projeto Salva Terra, de 1974.
É sabida a influência que, no princípio dos anos de 1970, a música negra americana exerceu sobre muitos astros da nascente MPB. Para não falar dos autênticos negões, Tim, Cassiano, Hildon, Toni Tornado e da geração imediatamente posterior, Dafé, Oberdan e Black Rio, Gerson King Combo, pois seria malhar no óbvio, lembremos aqui os discos de Elis Regina de 1970 (Em Pleno Verão), 1971 e 1972, realizados “with a little help from” Nélson Motta, em que a cantora, líder em 1967 da passeata contra a guitarra elétrica, caia no soul e no funk, inclusive recebendo o próprio Tim Maia para uma interpretação nota 10 de “These are the Songs” e regravando espetacularmente “As Curvas da Estrada de Santos”.
Mas legal mesmo é ouvir Roberto Carlos em seu momento black is beautiful. As biografias são unânimes em contar que, no final dos anos de 1960, Roberto e Erasmo estavam magnetizados pela soul music. Tanto em sua autobiografia como em Noites Tropicais, de Nelson Motta, fica patente o lugar de Erasmo na abertura da cabeça de Roberto para as sonoridades negras que desciam do Norte. Mesmo assim, antecipando Tim Maia em alguns anos, é Roberto Carlos quem vai dar cara nacional-popular aos ritmos da Motown, da Atlantic e da Stax-Volt, gravando no imaginário coletivo uma penca de gemas soul que, apesar disso, ou por isso mesmo, são profunda e injustamente subestimadas.
Preparei uma listinha com algumas dessas gemas, algumas escondidas e outras incompreendidas, a despeito de serem extremamente populares. A sugestões seguem com um comentariozinho de valor mais afetivo do que crítico.
Esqueça seu jeito esnobe de roqueiro principista, afaste o sofá da sala, se esbalde com este track list e tente ouvir Roberto Carlos com ouvidos mais livres.
1. “Não Adianta Nada” – a primeira recomendação é de um disco já do Roberto romântico semibrega, lá dos idos de 1973. Mas é a melhor faixa soul gravada pelo Rei e, talvez, a melhor gravada num disco no Brasil. E, sem medo de ser feliz, incluo aquelas lançadas por Tim Maia nesta comparação. “Gravada no Brasil” é força de expressão, pois a produção e arranjos são notoriamente gringos. Bateria altíssima e baixo rechonchudo na frente, naipe de metais com trombone tonitruante, guitarra rítmica suingada e a voz de RC enterrada lá atrás na mixagem. Como se dizia no meu tempo, um racha-assoalho pesadíssimo e sacolejante, pau a pau com o melhor do mestre Tim Maia.
2. “Não Há Dinheiro que Pague” – Voltando no tempo, esta faixa é do LP de 1968, O Inimitável, disco de ruptura com a Jovem Guarda, melhor dizendo, de superação da Jovem Guarda, posto que dela incorpora vários elementos, mas num patamar superior. A inspiração em Otis Reding e congêneres é gritante. Esta faixa antecipa os procedimentos que chegariam à perfeição em Não Adianta Nada, já comentada. O Inimitável é o melhor disco da carreira de Roberto e um dos melhores do pop nacional.
3. “Se Você Pensa” – também de O Inimitável, soul roqueiro com metais em brasa. Faixa muito popular, está na eternidade só pelas bases de guitarra tão reconhecíveis que se gravaram no imaginário de várias gerações.
4. “Nada Vai Me Convencer” – do disco de 1969, soul em formato clássico e letra amorosa-inconformista e refrão popular que maltrata o português: “já cansei de ser escravo de você”. Células rítmicas repetitivas, harmonia ao órgão Farfisa de Lafayete e guitarra de uma nota só. Selvagem!
5. “Não Vou Ficar” – a selvageria segue em pérola de Tim Maia registrada pelo autor apenas em seu segundo disco e, diga-se, em versão muito inferior a esta. Também do disco de 1969. Nelson Motta afirma que as gravações foram dirigidas pelo próprio Tim que, como não lia nem escrevia partitura, fez o arranjo e ensinou aos músicos como deveriam tocar na base da imitação de boca dos instrumentos. Isso como se a faixa que deu a Maia seu primeiro hit já não fosse suficientemente lendária!
6. “Do Outro Lado da Cidade” – simpática melodia que emula o Jorge Ben de discos como O Bidu. Seria, é claro, um exagero atribuir a Roberto a invenção do samba-rock, mas aqui temos uma das melhores e pioneiras expressões deste estilo brasileiro.
7. “As Curvas da Estrada de Santos” – culminância musical e lírica de Roberto e Erasmo, não por acaso de sotaque negróide. O que dizer desta faixa das mais conhecidas e regravadas da dupla? Um blues de melodia rara e movido a base de guitarra diretamente saída dos discos de Otis Reding e sopros que marcam dramaticamente os momentos mais pungentes da canção. A letra cinematográfica deve ter feito Caetano Veloso (que ouviu uma prévia da música em Londres, da boca do próprio autor) se roer de inveja.
8. “Sua Estupidez” – clássico absoluto. Simplesmente, uma das canções de amor mais violentas que eu conheço, que nem a gravação suave de Gal Costa em A Todo Vapor reduziu a contundência!
9. “Uma Palavra Amiga” – canção de autoria do autêntico negão Getúlio Cortes (figura do rock e do soul brasileiros que merece ser resgatada). Piano pulante como fundo para melodia suave mas pontuada por blue notes, que prepara a entrada do naipe de sopros encharcados de soul, fazendo contraponto à seção tonitruante de cordas. Um jogo de intensidade e silêncio típico da soul music da época. Do disco de 1970.
10. “Se Eu Pudesse Voltar no Tempo” – soul tropical e relaxado no estilo mais de Erasmo do que de Roberto. Bateria na frente e base pontuadas por intervenções “grosseiras” de trombone, instrumento que lidera o naipe de sopros. Também do disco de 1970.
11. “Todos Estão Surdos” – esqueça a letra pacifista-carola e se concentre no arranjo pesado, nas guitarras rascantes, na bateria de baque solto, no coral de negonas e no tom celebratório tipicamente hippie. Hipnótica canção, regravada com toda propriedade por Chico Science (Disco-tributo “Rei”), que prolonga a fase soul num disco (Roberto Carlos, 1971) que marcaria a virada estilística de Roberto, mas ainda preservando uma inatacável categoria.
12. “Como Dois e Dois” – embora tenha sido lançada originalmente por Roberto, no disco de 1971, com grande sucesso popular, este clássico blues de Caetano Veloso, composto em Londres, não é muito lembrado por este registro de Roberto. Com letra de ironia fina em relação ao pico de repressão da Ditadura Militar, trata-se de uma das únicas incursões de Roberto na canção de temática política, embora sutil. O arranjo não é tão abertamente soul-blues mas a fagulha negra está lá.
13. “Eu só Tenho Um Caminho” – rock de Renato Barros com condução marcante de guitarra, mas remetida às sonoridades soul pela intervenção do naipe de metais.
Depois deste período, no início dos anos 1970, indo até meados desta década, Roberto abandonará, ao mesmo tempo, as referência roc k& soul e o estilo vocal calcado no minimalismo de João Gilberto estupendamente adaptado a suas canções eletrificadas da Jovem Guarda e do período negróide. Se vocês ouvirem o brilhante Caetano Veloso desta época, perceberão que sua propalada herança vocal joãogilbertiana passou pelo choque entre delicadeza e eletricidade que Roberto criou nos anos de 1960.
Depois, Roberto adentrou em outra tradição, a da interpretação melodramática, sentida, sem chegar (até porque sua extensão vocal não permitia) ao dó de peito. Tradição que se corporificou no profícuo veio cafona que nos deu gigantes da música popular da época, todos imitando, mais ou menos, os trejeitos robertianos: Paulo Sérgio, Odair José, Fernando Mendes, Zé Augusto e tantos outros.
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