Villa-Lobos, Hermeto, Chico, Drummond e as viagens pelo interior do país
TREM
Villa-Lobos, Hermeto e o interior do país
Confesso que, inspirado pela trilha sonora dos acontecimentos do dia primeiro de janeiro, acordei no segundo dia do ano ouvindo a música “O Trenzinho do Caipira”, do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. “O Trenzinho do Caipirinha” é uma música clássica, inspirada pelo estilo de Johann Sebastian Bach – daí sua presença no repertório das Bachianas Brasileiras –, mas cuja fonte vital vem do folclore brasileiro, principalmente da música caipira.
A obra de Villa-Lobos é o resultado de um fascínio do compositor pelo Brasil, de uma jornada musical que não tem medo de percorrer o interior do país. Ele declarou: “o meu primeiro livro foi o mapa do Brasil, o Brasil que eu palmilhei, cidade por cidade, estado por estado, floresta por floresta, perscrutando a alma de uma terra. Depois, o caráter dos homens dessa terra. Depois, as maravilhas naturais dessa terra”.
Em 1975, o poeta Ferreira Gullar, inspirado pelas viagens que fazia com seu pai quando criança, passando de trem por um pantanal iluminado pela luz da madrugada entre São Luís e Teresina, viria a escrever uma letra para a música. Assim, a composição, inspirada pela música caipira, faria seu retorno fundamental do repertório clássico em direção ao cancioneiro popular brasileiro.
Hoje a malha ferroviária é inexistente no país. Mas o trem já foi um grande personagem do imaginário nacional. O trem de passageiros era a trama de uma vida mais contemplativa, de viagens que permitiam observar a paisagem. Já o trem de carga, hoje substituído pelo caminhão, simbolizava a indústria, que levava as riquezas do Brasil para fora daqui.
Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, que viveu na cidade de Itabira, presente no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais, lamentava o extrativismo com a imagem de um país que desaparece gradativamente levado pelo trem. No poema O Maior Trem do Mundo, escreveu: O maior trem do mundo / Transporta a coisa mínima do mundo / Meu coração itabirano / Lá vai o trem maior do mundo / Vai serpenteando, vai sumindo / E um dia, eu sei não voltará / Pois nem terra nem coração existem mais.
Já para a música, a presença do trem é importante porque a locomotiva suscita ritmos e onomatopeias. A música de Villa-Lobos, por exemplo, imita o movimento de uma locomotiva com os instrumentos da orquestra. Outro exemplo está na música “Pedro Pedreiro”, que consta no álbum de estreia de Chico Buarque, que também imita a aproximação do trem com o verso “que já vem”, suscitando a angústia do homem que espera a condução para ir trabalhar.
Hermeto Pascoal, ao lado de Edu Lobo, também gravou uma versão para “O Trenzinho do Caipira”. Mas a inspiração que une a musicalidade no andar do trem ao imaginário interiorano é plenamente explorada na faixa “Viva o Trem”, presente no disco Brincando de Corpo e Alma, no qual Hermeto toca apenas parte de seu corpo, incluindo barba, bochecha, barriga, batimento cardíaco e assim por diante.
Nela, enquanto Hermeto fala, remixa sua própria voz e sopra sobre suas mãos fechadas e assobiando como o apito do trem. Ele diz: “o trem, pra quem morou no interior, é uma lembrança que dá quando a gente sai da terra da gente. É aquela saudade, que você não tem nem adjetivo pra dizer… Você lembra dessa saudade sempre com alegria, o trem é uma alegria que não devia faltar em lugar nenhum do mundo, mas o lugar onde falta mais trem é no Brasil”.
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