Nascido em 1939 na cidade portuária japonesa de Kobo, aos 16 anos de idade o jovem Yuya Uchida teve uma revelação: numa sessão de cinema, ele assistiu a Sementes da Violência e, como para outros milhões de Raul Seixas espalhados pelo mundo, o rock’n’roll passou a ser uma religião e Elvis Presley seu principal profeta.
Daí a abandonar os estudos e formar sua primeira banda foi só uma questão de tempo, bem pouco tempo por sinal. Em 1957, Yuya formou sua primeira banda, os Blue Caps, e foi pulando de banda em banda durante a virada dos anos sessenta, gravando inclusive uma série de versões japonesas das canções de Elvis como membro da banda Takeshi Terauchi and the Bluejeans.
Em 1964, outra revelação: um amigo o apresentou aos Beatles. A partir daí Elvis já era, substituído em seu coração por John, Paul, George e Ringo.
Obcecado pela beatlemania, Uchida teve a idéia de aproveitar a vinda dos Beatles ao Japão em 1966 para gravar uma música chamada “Welcome Beatles”. Para isso ele precisava achar uma nova banda e descobriu The Funnies, um desconhecido combo da cidade de Kyoto. O problema é que o grupo não aceitou dispensar seu cantor para se tornar a banda de apoio de Yuya, preferindo continuar como estava (o que não foi uma péssima idéia, uma vez que logo mais eles estourariam em todo o país como The Tigers). Desiludido, nosso samurai pegou a espada e se mandou para a Europa.
Em Londres, o agora hippie Yuya aproveitou para ver e ouvir de tudo, de Hendrix a Who, passando por Zeppelin, Misunderstood e toda a cena psicodélica inglesa. Depois de viver por um tempo também em Paris, Uchida volta para o Japão trazendo muitas ideias novas e, principalmente, a convicção de que o inglês é a língua perfeita para se cantar rock, seja em Tóquio ou em qualquer lugar do mundo.
REGADO A EXPERIMENTALISMO
Tocar em um conjunto de rock e pertencer ao intrépido mundo dos GS (Group Sounds) japoneses da segunda metade dos anos 60 significava usar roupinhas fashion, cortar o cabelo na crista da onda, aparecer nos programas de TV (sempre com um cantor bonitinho monopolizando os closes das câmeras) e participar de campanhas publicitárias para os produtos dos grandes anunciantes. Nada diferente do que foi a Jovem Guarda por aqui, mas com um detalhe fundamental: menina não entrava. Era um clube do Bolinha absolutamente fechado ao sexo frágil.
Yuya Uchida voltou ao Japão disposto a bagunçar esse status quo. Para começar ele queria que o seu novo grupo, que passou a formar arregimentando bons músicos descontentes com a cena local, atuasse em várias frentes. Ele não pensava apenas em gravar discos, mas também em participar de projetos para o cinema, teatro e happenings multimídias.
Um dos primeiros a se entusiasmar com as ideias de Yuya foi o compositor de formação clássica Toshi Ichiyanagi, ex-marido de Yoko Ono, que andava meio contaminado pela psicodelia da época e envolvido no projeto de uma ópera que misturava orquestra sinfônica e banda de rock, baseada nas obras do pintor Tadanori Yoko’o. Na realidade, Toshi ficou tão entusiasmado com Uchida que encomendou uma música a ele com as seguintes exigências: que tivesse 30 minutos e que fosse inspirada num quadro de Tadanori chamado I’m Dead.
Nesse meio tempo, Yuya já tinha formado sua banda, The Flowers, com Hiroshi Chiba nos vocais, Hideki Ishima e Katsuhiko Kobayashi nas guitarras, Ken Hashimoto no baixo e Joji “George” Wada na bateria. A cereja do bolo foi a contratação da cantora Remi Aso, uma espécie de Janis Joplin de olhos puxados, que andava tão desiludida com o machismo dos GS a ponto de abandonar tudo para se casar e levar uma pacata vida de dona-de-casa, coisa que acabou adiando para ser uma Flowers.
Com essa formação e com Uchida e Tadanori dividindo a mesa de 16 canais dos estúdios da NKH Radio, a banda gravou esse que é considerado um dos grandes épicos psicodélicos da terra do sol nascente, uma imersão total em 10.000 anos de lisergia japonesa. Com 27 minutos de duração e dividida em duas partes, “I’m Dead” ficou anos relegada à fita master, ganhando status de mito. Acabou sendo lançada na íntegra poucos anos atrás num disco pirata chamado From Pussies to Death in 10.000 Years of Freakout.
O mais positivo dessa gravação foi a certeza de Yuya de que tinha realmente uma banda para gravar um LP.
TODO MUNDO NU
Challenge, o LP de estréia de Yuya Uchida and the Flowers, lançado em 1969 pelo selo Synton, foi muito mais um anti-climax do que o tão aguardado estopim da revolução prometida por Uchida.
O problema é que Yuya agora, como líder e responsável pela banda, tinha que pagar seus músicos. Para isso ele teve que compartilhar a gravação do LP com apresentações em clubes, dividindo o palco e as atenções justamente com as bandas que ele veio para destruir.
Sem tempo de compor novas músicas, o grupo teve que apelar para os covers, o mesmo artifício de seus rivais, e acabou por não trazer nada de novo ao cenário GS.
Com uma única composição própria, a instrumental “Okotono o Toco”, Challenge veio à luz com covers dos Big Brother and Holding Co, Cream, Hendrix e Jefferson Airplane. Na verdade, o álbum chamou atenção menos pela música e muito mais por uma genial jogada de marketing de Yuya, que colocou toda a banda nua na capa do LP, a cantora Remi Aso inclusive.
Com as fracas vendas de Challenge e a repercussão apenas morna das apresentações do grupo, era de se esperar que Yuya perdesse o interesse e resolvesse mexer alguns pauzinhos.
VALE QUANTO PESA
Muita coisa nova estava passando pela cabeça de Yuya na virada dos anos setenta. Pra começar, seus ouvidos andavam cada vez mais atentos à fornada de novas bandas inglesas com uma pegada mais pesada, como Led Zeppelin e Black Sabbath. Uma bateria, um baixo e uma guitarra produzindo volume para um bom cantor era mais do que o suficiente para o tipo de som que ele tinha em mente. Ele mesmo estava praticamente convencido de que o seu lugar na banda era muito mais o de agitador, mentor e produtor e menos o de cantor ou guitarrista.
Nessa época, todo o underground hippie da cidade de Tókio andava agitado com a montagem japonesa de Hair. E foi no cast dessa peça que Yuya conheceu Akira “Joe” Yamanaka e seus longos cabelos black power. Ex-cantor da banda Four Nine Ace, Joe foi convidado por Yuya para integrar os Flowers em seu próximo show, o Rock’n’Roll Jam 70, promovido pela Toshiba Express Records e que reuniria 4 bandas, The Mops, Happenings Four, The Golden Cups e a banda de Uchida, com a finalidade de gravar ao vivo um LP duplo, sendo um lado para cada banda.
Mais do que um festival de música, foi isso sim um festival de covers, onde a apresentação mais radical e bem recebida pelo público foi sem dúvida a dos Flowers e suas novas interpretações para canções do Zeppelin: “You Shook Me”, cantada por Joe, e a performance arrebatadora de “How Many More Times”, cantada por Remi Aso, foram o ponto alto da noite, convencendo de vez Uchida de que estava na hora de se pensar em um novo desenho para sua banda.
PROGRESSIVO MA NON TROPPO
Do septeto original, apenas o guitarrista Hideki Ishima e o baterista George Wada foram mantidos na banda, com Joe nos vocais e Yuya assumindo sua nova identidade de produtor e empresário.
Ainda sem um baixista, a nova formação dos Flowers foi convidada pela Capitol Records para servir de apoio para o álbum solo de estréia do tecladista Kuni Kawachi, do Happening Four + 1, um grupo muito influenciado por bandas do tipo Procol Harum.
O álbum, de nome Kirikyogen, caiu como uma luva para testar as novas possibilidades dos Flowers que, juntamente com o teclado a la Vincent Crane de Kuni, gravaram uma pequena obra prima do progressivo japonês.
O único a não ficar satisfeito com o resultado foi justamente Yuya, pois na sua cabeça o teclado de seu amigo Kuni apenas ocupava um espaço desnecessário ao novo som pesado que seu grupo começava a perseguir.
Seguindo agora a cartilha do hard rock e com a recente contratação de um jovem e cabeludo baixista de nome Jun Kosuki, Uchida tinha finalmente uma usina de som para botar na estrada em apresentações arrebatadoras por todo o país e gravar uma safra de álbuns antológicos. O nome dessa nova formação: Flower Travellin’ Band.
TODO MUNDO NU, MAS AGORA DE MOTO
Já com 30 anos nas costas e ainda perseguindo o sucesso, Uchida tinha pressa. E de forma irracional, se considerarmos que o novo FTB ainda não tinha absolutamente nenhuma composição própria, os músicos entraram em estúdio para gravar o disco de estréia.
Todo mundo esperava mais um LP de covers e foi exatamente isso que chegou ao mercado em 1970. O que ninguém esperava era a qualidade do material. Batizado de Anywhere, o álbum fazia releituras memoráveis de 4 músicas que hoje são clássicos absolutos do rock. O guitarrista Ishima, no mais puro estilo “Dr. Jeckyl and Mr. Hide”, havia tomado um elixir de decibéis e se transformado em um verdadeiro demônio da guitarra, desfilando riffs e mais riffs de puro peso sonoro. A cozinha de Wada e do novato Kosuki não ficava devendo nada aos medalhões do hard inglês e Joe cantava com alma suficiente para impor sua personalidade a canções que passaram para a posteridade na voz de ninguém menos que Muddy Waters (“Louisiana Blues”, numa versão que ocupava todo o lado A do disco), Eric Burdon (“House of the Rising Sun”, mais chorosa do que nunca), Ozzy Osbourne (“Black Sabbath”, o primeiro cover que se tem notícia da banda de Tommy Iommi) e Greg Lake (“21th Century Schizoid Man”, onde o sax e os toques jazzísticos da música original foram trocados por toneladas de heavy metal).
Na capa do LP, todos os músicos e Yuya aparecem novamente pelados, desta vez sobre motos, cruzando uma estrada deserta qualquer do Japão, no mais fiel e libertário estilo travellin’ band.
O DESABROCHAR DAS FLORES
Em 1971, os deuses finalmente começaram a conspirar a favor de Yuya. Os shows do FTB por todo o Japão eram sucesso e Ishima estava se revelando não apenas um guitarrista de ótima pegada como também um compositor de mão cheia.
Mas a grande notícia do ano veio de um velho amigo de Uchida chamado Ikuzo Orita, que estava deixando a Polydor para assumir o comando da Atlantic. Por tradição, Orita investia pesado nos grupos japoneses e queria ter o Flowers como carro chefe, uma banda capaz de rivalizar com os grandes do cast internacional da gravadora.
Nas primeiras conversas ficou estabelecido entre Yuya e Orita que o FTB seria a primeira banda a ter um álbum lançado nessa nova administração e que muito dinheiro seria investido tanto na produção e apresentação do LP como na sua promoção, no Japão e no exterior. Yuya aproveitou para expor ao amigo algumas novas ideias e uma delas seria tentar trabalhar o peso do rock com a sutileza da milenar música oriental.
Banda reunida no estúdio para planejar o novo álbum e Ishima tira da manga três temas que a banda andava trabalhando, com forte influência justamente na sonoridade oriental. Como as músicas ainda estavam sendo desenvolvidas, elas tinham como nome de trabalho Satori I, Satori II e Satori III.
Surpresos com a coincidência e totalmente animados pela força do material e a simplicidade poética das letras, Yuya e Orita não viram apenas uma luz para o novo LP, mas uma verdadeira iluminação, como se tivessem realmente atingido o Satori (a iluminação através do Zen).
Lançado ainda no ano de 1971, acondicionado numa primorosa capa ilustrada pelo artista Shinobu Ishimaru e inspirada no budismo, Satori é de longe o mais ensandecido LP de rock japonês dos anos 70 e um dos mais influentes álbuns de hard rock produzidos fora do eixo Inglaterra-Estados Unidos.
FEITO NO CANADÁ
Passadas quatro décadas do lançamento de Satori, fica fácil olhar para trás e constatar todo o gigantismo deste álbum, mas acontece que as respostas imediatas ao seu lançamento no Japão foram um tanto frustrantes. Parece que o gosto dos jovens japoneses de repente mudou e eles estavam mais folkies do que nunca, embalados pelo som dos James Taylor e Carole King da vida.
A boa nova veio do outro lado do mundo, com a banda sendo convidada para abrir os shows da próxima turnê do grupo canadense Lighthouse. Ainda nessa mesma época e também no Canadá o FTB abriu para o Emerson, Lake and Palmer e Bob Seger numa apresentação em Toronto.
A camaradagem entre os Flowers e Paul Hoffert, organista e líder do Lighthouse, foi tanta que o canadense resolveu produzir o novo LP do FTB ali mesmo, no Canadá. Um álbum que ironicamente seria chamado de Made in Japan.
Como Yuya e Orita permaneceram em Tóquio, não havia ninguém para bater o pé e Paul Hoffert ficou à vontade para conduzir o som da banda para algo muito mais próximo de sua formação jazzística e conservadora. Os vocais de Joe, por exemplo, foram muito mais privilegiados do que a guitarra maluca de Ishima. A banda gravou baladas e algumas passagens acústicas, coisas impensáveis na mão de Yuya.
Ainda assim Made in Japan revelou-se um grande álbum, com pérolas irretocáveis como “Kamikase”, “Hiroshima” e “Spasm”. No fim das contas, sua sonoridade acabou sendo muito bem aceita pelos agora mais comportados fãs japoneses.
THE END
Qual um Godzila cansado de destruir Tóquio, o Flower Travellin’ Band estava perdendo o pique quando voltou ao Japão. Já dava para sentir sérias divergências de interesses entre os membros da banda, uma vez que Joe começou a inclinar-se para a soul music, enquanto Ishima estava tomando gosto pela sonoridade acústica.
Quando acendeu a luz vermelha, Uchida tratou de se mexer. Criando todo um carnaval sobre o fato da banda ter tocado e “arrasado” na América (cá entre nós, no Canadá), abrindo para o ELP e coisa e tal, ele credenciou o FTB para ser a banda de abertura no show dos Stones no Japão. Infelizmente, esse show acabou fracassando depois que as autoridades negaram o visto de trabalho a Mick Jagger por seu envolvimento com drogas.
O jeito foi inventar um disco ao vivo e planejaram com a Atlantic de Orita o lançamento de um álbum duplo que seria gravado durante um show nas montanhas, a uma hora de Tóquio, no dia 16 de setembro de 1972.
Quando chegou o dia, com ele chegou um tremendo dilúvio e o show só não foi cancelado porque já havia alguns milhares de fãs lotando o local. E foram esses privilegiados que acabaram assistindo ao último grande concerto dos Flowers.
Tudo perfeito, menos o fato de que a chuva acabou atrapalhando o posicionamento do caminhão com o estúdio móvel. Assim que Yuya ouviu a gravação do show pôde constatar que boa parte do som estava arruinado. O que se salvou teve que ser misturado com sobras de estúdio para completar o álbum duplo, resultando num tremendo pastiche: a música “Kamikase”, por exemplo, virou uma overdose sonora com 24 minutos de duração.
Novamente o ponto alto de mais esta bolacha da banda foi a apresentação gráfica, pois os discos foram acondicionados numa incrível maleta marrom.
Já à beira do fim, Joe tratou de jogar a pá de cal que faltava ao anunciar que iria abandonar a banda para dedicar-se à carreira solo. Ishima fez o mesmo, aprofundando-se no estudo da cítara e gravando vários discos e Yuya passou a dedicar-se à sua prolífica carreira paralela de ator de cinema (trabalhou em Merry Christmas, Mr. Lawrence, por exemplo, ao lado de David Bowie e Ryuichi Sakamoto).
É isso aí. The dream is over. Sayonara.
Nascido em 1939 na cidade portuária japonesa de Kobo, aos 16 anos de idade o jovem Yuya Uchida teve uma revelação: numa sessão de cinema, ele assistiu a Sementes da Violência e, como para outros milhões de Raul Seixas espalhados pelo mundo, o rock’n’roll passou a ser uma religião e Elvis Presley seu principal profeta.
Daí a abandonar os estudos e formar sua primeira banda foi só uma questão de tempo, bem pouco tempo por sinal. Em 1957, Yuya formou sua primeira banda, os Blue Caps, e foi pulando de banda em banda durante a virada dos anos sessenta, gravando inclusive uma série de versões japonesas das canções de Elvis como membro da banda Takeshi Terauchi and the Bluejeans.
Em 1964, outra revelação: um amigo o apresentou aos Beatles. A partir daí Elvis já era, substituído em seu coração por John, Paul, George e Ringo.
Obcecado pela beatlemania, Uchida teve a idéia de aproveitar a vinda dos Beatles ao Japão em 1966 para gravar uma música chamada “Welcome Beatles”. Para isso ele precisava achar uma nova banda e descobriu The Funnies, um desconhecido combo da cidade de Kyoto. O problema é que o grupo não aceitou dispensar seu cantor para se tornar a banda de apoio de Yuya, preferindo continuar como estava (o que não foi uma péssima idéia, uma vez que logo mais eles estourariam em todo o país como The Tigers). Desiludido, nosso samurai pegou a espada e se mandou para a Europa.
Em Londres, o agora hippie Yuya aproveitou para ver e ouvir de tudo, de Hendrix a Who, passando por Zeppelin, Misunderstood e toda a cena psicodélica inglesa. Depois de viver por um tempo também em Paris, Uchida volta para o Japão trazendo muitas ideias novas e, principalmente, a convicção de que o inglês é a língua perfeita para se cantar rock, seja em Tóquio ou em qualquer lugar do mundo.
REGADO A EXPERIMENTALISMO
Tocar em um conjunto de rock e pertencer ao intrépido mundo dos GS (Group Sounds) japoneses da segunda metade dos anos 60 significava usar roupinhas fashion, cortar o cabelo na crista da onda, aparecer nos programas de TV (sempre com um cantor bonitinho monopolizando os closes das câmeras) e participar de campanhas publicitárias para os produtos dos grandes anunciantes. Nada diferente do que foi a Jovem Guarda por aqui, mas com um detalhe fundamental: menina não entrava. Era um clube do Bolinha absolutamente fechado ao sexo frágil.
Yuya Uchida voltou ao Japão disposto a bagunçar esse status quo. Para começar ele queria que o seu novo grupo, que passou a formar arregimentando bons músicos descontentes com a cena local, atuasse em várias frentes. Ele não pensava apenas em gravar discos, mas também em participar de projetos para o cinema, teatro e happenings multimídias.
Um dos primeiros a se entusiasmar com as ideias de Yuya foi o compositor de formação clássica Toshi Ichiyanagi, ex-marido de Yoko Ono, que andava meio contaminado pela psicodelia da época e envolvido no projeto de uma ópera que misturava orquestra sinfônica e banda de rock, baseada nas obras do pintor Tadanori Yoko’o. Na realidade, Toshi ficou tão entusiasmado com Uchida que encomendou uma música a ele com as seguintes exigências: que tivesse 30 minutos e que fosse inspirada num quadro de Tadanori chamado I’m Dead.
Nesse meio tempo, Yuya já tinha formado sua banda, The Flowers, com Hiroshi Chiba nos vocais, Hideki Ishima e Katsuhiko Kobayashi nas guitarras, Ken Hashimoto no baixo e Joji “George” Wada na bateria. A cereja do bolo foi a contratação da cantora Remi Aso, uma espécie de Janis Joplin de olhos puxados, que andava tão desiludida com o machismo dos GS a ponto de abandonar tudo para se casar e levar uma pacata vida de dona-de-casa, coisa que acabou adiando para ser uma Flowers.
Com essa formação e com Uchida e Tadanori dividindo a mesa de 16 canais dos estúdios da NKH Radio, a banda gravou esse que é considerado um dos grandes épicos psicodélicos da terra do sol nascente, uma imersão total em 10.000 anos de lisergia japonesa. Com 27 minutos de duração e dividida em duas partes, “I’m Dead” ficou anos relegada à fita master, ganhando status de mito. Acabou sendo lançada na íntegra poucos anos atrás num disco pirata chamado From Pussies to Death in 10.000 Years of Freakout.
O mais positivo dessa gravação foi a certeza de Yuya de que tinha realmente uma banda para gravar um LP.
TODO MUNDO NU
Challenge, o LP de estréia de Yuya Uchida and the Flowers, lançado em 1969 pelo selo Synton, foi muito mais um anti-climax do que o tão aguardado estopim da revolução prometida por Uchida.
O problema é que Yuya agora, como líder e responsável pela banda, tinha que pagar seus músicos. Para isso ele teve que compartilhar a gravação do LP com apresentações em clubes, dividindo o palco e as atenções justamente com as bandas que ele veio para destruir.
Sem tempo de compor novas músicas, o grupo teve que apelar para os covers, o mesmo artifício de seus rivais, e acabou por não trazer nada de novo ao cenário GS.
Com uma única composição própria, a instrumental “Okotono o Toco”, Challenge veio à luz com covers dos Big Brother and Holding Co, Cream, Hendrix e Jefferson Airplane. Na verdade, o álbum chamou atenção menos pela música e muito mais por uma genial jogada de marketing de Yuya, que colocou toda a banda nua na capa do LP, a cantora Remi Aso inclusive.
Com as fracas vendas de Challenge e a repercussão apenas morna das apresentações do grupo, era de se esperar que Yuya perdesse o interesse e resolvesse mexer alguns pauzinhos.
VALE QUANTO PESA
Muita coisa nova estava passando pela cabeça de Yuya na virada dos anos setenta. Pra começar, seus ouvidos andavam cada vez mais atentos à fornada de novas bandas inglesas com uma pegada mais pesada, como Led Zeppelin e Black Sabbath. Uma bateria, um baixo e uma guitarra produzindo volume para um bom cantor era mais do que o suficiente para o tipo de som que ele tinha em mente. Ele mesmo estava praticamente convencido de que o seu lugar na banda era muito mais o de agitador, mentor e produtor e menos o de cantor ou guitarrista.
Nessa época, todo o underground hippie da cidade de Tókio andava agitado com a montagem japonesa de Hair. E foi no cast dessa peça que Yuya conheceu Akira “Joe” Yamanaka e seus longos cabelos black power. Ex-cantor da banda Four Nine Ace, Joe foi convidado por Yuya para integrar os Flowers em seu próximo show, o Rock’n’Roll Jam 70, promovido pela Toshiba Express Records e que reuniria 4 bandas, The Mops, Happenings Four, The Golden Cups e a banda de Uchida, com a finalidade de gravar ao vivo um LP duplo, sendo um lado para cada banda.
Mais do que um festival de música, foi isso sim um festival de covers, onde a apresentação mais radical e bem recebida pelo público foi sem dúvida a dos Flowers e suas novas interpretações para canções do Zeppelin: “You Shook Me”, cantada por Joe, e a performance arrebatadora de “How Many More Times”, cantada por Remi Aso, foram o ponto alto da noite, convencendo de vez Uchida de que estava na hora de se pensar em um novo desenho para sua banda.
PROGRESSIVO MA NON TROPPO
Do septeto original, apenas o guitarrista Hideki Ishima e o baterista George Wada foram mantidos na banda, com Joe nos vocais e Yuya assumindo sua nova identidade de produtor e empresário.
Ainda sem um baixista, a nova formação dos Flowers foi convidada pela Capitol Records para servir de apoio para o álbum solo de estréia do tecladista Kuni Kawachi, do Happening Four + 1, um grupo muito influenciado por bandas do tipo Procol Harum.
O álbum, de nome Kirikyogen, caiu como uma luva para testar as novas possibilidades dos Flowers que, juntamente com o teclado a la Vincent Crane de Kuni, gravaram uma pequena obra prima do progressivo japonês.
O único a não ficar satisfeito com o resultado foi justamente Yuya, pois na sua cabeça o teclado de seu amigo Kuni apenas ocupava um espaço desnecessário ao novo som pesado que seu grupo começava a perseguir.
Seguindo agora a cartilha do hard rock e com a recente contratação de um jovem e cabeludo baixista de nome Jun Kosuki, Uchida tinha finalmente uma usina de som para botar na estrada em apresentações arrebatadoras por todo o país e gravar uma safra de álbuns antológicos. O nome dessa nova formação: Flower Travellin’ Band.
TODO MUNDO NU, MAS AGORA DE MOTO
Já com 30 anos nas costas e ainda perseguindo o sucesso, Uchida tinha pressa. E de forma irracional, se considerarmos que o novo FTB ainda não tinha absolutamente nenhuma composição própria, os músicos entraram em estúdio para gravar o disco de estréia.
Todo mundo esperava mais um LP de covers e foi exatamente isso que chegou ao mercado em 1970. O que ninguém esperava era a qualidade do material. Batizado de Anywhere, o álbum fazia releituras memoráveis de 4 músicas que hoje são clássicos absolutos do rock. O guitarrista Ishima, no mais puro estilo “Dr. Jeckyl and Mr. Hide”, havia tomado um elixir de decibéis e se transformado em um verdadeiro demônio da guitarra, desfilando riffs e mais riffs de puro peso sonoro. A cozinha de Wada e do novato Kosuki não ficava devendo nada aos medalhões do hard inglês e Joe cantava com alma suficiente para impor sua personalidade a canções que passaram para a posteridade na voz de ninguém menos que Muddy Waters (“Louisiana Blues”, numa versão que ocupava todo o lado A do disco), Eric Burdon (“House of the Rising Sun”, mais chorosa do que nunca), Ozzy Osbourne (“Black Sabbath”, o primeiro cover que se tem notícia da banda de Tommy Iommi) e Greg Lake (“21th Century Schizoid Man”, onde o sax e os toques jazzísticos da música original foram trocados por toneladas de heavy metal).
Na capa do LP, todos os músicos e Yuya aparecem novamente pelados, desta vez sobre motos, cruzando uma estrada deserta qualquer do Japão, no mais fiel e libertário estilo travellin’ band.
O DESABROCHAR DAS FLORES
Em 1971, os deuses finalmente começaram a conspirar a favor de Yuya. Os shows do FTB por todo o Japão eram sucesso e Ishima estava se revelando não apenas um guitarrista de ótima pegada como também um compositor de mão cheia.
Mas a grande notícia do ano veio de um velho amigo de Uchida chamado Ikuzo Orita, que estava deixando a Polydor para assumir o comando da Atlantic. Por tradição, Orita investia pesado nos grupos japoneses e queria ter o Flowers como carro chefe, uma banda capaz de rivalizar com os grandes do cast internacional da gravadora.
Nas primeiras conversas ficou estabelecido entre Yuya e Orita que o FTB seria a primeira banda a ter um álbum lançado nessa nova administração e que muito dinheiro seria investido tanto na produção e apresentação do LP como na sua promoção, no Japão e no exterior. Yuya aproveitou para expor ao amigo algumas novas ideias e uma delas seria tentar trabalhar o peso do rock com a sutileza da milenar música oriental.
Banda reunida no estúdio para planejar o novo álbum e Ishima tira da manga três temas que a banda andava trabalhando, com forte influência justamente na sonoridade oriental. Como as músicas ainda estavam sendo desenvolvidas, elas tinham como nome de trabalho Satori I, Satori II e Satori III.
Surpresos com a coincidência e totalmente animados pela força do material e a simplicidade poética das letras, Yuya e Orita não viram apenas uma luz para o novo LP, mas uma verdadeira iluminação, como se tivessem realmente atingido o Satori (a iluminação através do Zen).
Lançado ainda no ano de 1971, acondicionado numa primorosa capa ilustrada pelo artista Shinobu Ishimaru e inspirada no budismo, Satori é de longe o mais ensandecido LP de rock japonês dos anos 70 e um dos mais influentes álbuns de hard rock produzidos fora do eixo Inglaterra-Estados Unidos.
FEITO NO CANADÁ
Passadas quatro décadas do lançamento de Satori, fica fácil olhar para trás e constatar todo o gigantismo deste álbum, mas acontece que as respostas imediatas ao seu lançamento no Japão foram um tanto frustrantes. Parece que o gosto dos jovens japoneses de repente mudou e eles estavam mais folkies do que nunca, embalados pelo som dos James Taylor e Carole King da vida.
A boa nova veio do outro lado do mundo, com a banda sendo convidada para abrir os shows da próxima turnê do grupo canadense Lighthouse. Ainda nessa mesma época e também no Canadá o FTB abriu para o Emerson, Lake and Palmer e Bob Seger numa apresentação em Toronto.
A camaradagem entre os Flowers e Paul Hoffert, organista e líder do Lighthouse, foi tanta que o canadense resolveu produzir o novo LP do FTB ali mesmo, no Canadá. Um álbum que ironicamente seria chamado de Made in Japan.
Como Yuya e Orita permaneceram em Tóquio, não havia ninguém para bater o pé e Paul Hoffert ficou à vontade para conduzir o som da banda para algo muito mais próximo de sua formação jazzística e conservadora. Os vocais de Joe, por exemplo, foram muito mais privilegiados do que a guitarra maluca de Ishima. A banda gravou baladas e algumas passagens acústicas, coisas impensáveis na mão de Yuya.
Ainda assim Made in Japan revelou-se um grande álbum, com pérolas irretocáveis como “Kamikase”, “Hiroshima” e “Spasm”. No fim das contas, sua sonoridade acabou sendo muito bem aceita pelos agora mais comportados fãs japoneses.
THE END
Qual um Godzila cansado de destruir Tóquio, o Flower Travellin’ Band estava perdendo o pique quando voltou ao Japão. Já dava para sentir sérias divergências de interesses entre os membros da banda, uma vez que Joe começou a inclinar-se para a soul music, enquanto Ishima estava tomando gosto pela sonoridade acústica.
Quando acendeu a luz vermelha, Uchida tratou de se mexer. Criando todo um carnaval sobre o fato da banda ter tocado e “arrasado” na América (cá entre nós, no Canadá), abrindo para o ELP e coisa e tal, ele credenciou o FTB para ser a banda de abertura no show dos Stones no Japão. Infelizmente, esse show acabou fracassando depois que as autoridades negaram o visto de trabalho a Mick Jagger por seu envolvimento com drogas.
O jeito foi inventar um disco ao vivo e planejaram com a Atlantic de Orita o lançamento de um álbum duplo que seria gravado durante um show nas montanhas, a uma hora de Tóquio, no dia 16 de setembro de 1972.
Quando chegou o dia, com ele chegou um tremendo dilúvio e o show só não foi cancelado porque já havia alguns milhares de fãs lotando o local. E foram esses privilegiados que acabaram assistindo ao último grande concerto dos Flowers.
Tudo perfeito, menos o fato de que a chuva acabou atrapalhando o posicionamento do caminhão com o estúdio móvel. Assim que Yuya ouviu a gravação do show pôde constatar que boa parte do som estava arruinado. O que se salvou teve que ser misturado com sobras de estúdio para completar o álbum duplo, resultando num tremendo pastiche: a música “Kamikase”, por exemplo, virou uma overdose sonora com 24 minutos de duração.
Novamente o ponto alto de mais esta bolacha da banda foi a apresentação gráfica, pois os discos foram acondicionados numa incrível maleta marrom.
Já à beira do fim, Joe tratou de jogar a pá de cal que faltava ao anunciar que iria abandonar a banda para dedicar-se à carreira solo. Ishima fez o mesmo, aprofundando-se no estudo da cítara e gravando vários discos e Yuya passou a dedicar-se à sua prolífica carreira paralela de ator de cinema (trabalhou em Merry Christmas, Mr. Lawrence, por exemplo, ao lado de David Bowie e Ryuichi Sakamoto).
É isso aí. The dream is over. Sayonara.
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