Clara Francisca Gonçalves Pinheiro nasceu em 12 de agosto de 1942 nasceu no povoado de Cedro, na época distrito do município de Paraopeba, no estado de Minas Gerais. O povoado se emancipou em 1954, e foi rebatizado para Caetanópolis. A futura cantora era filha caçula de um total de sete filhos. Sua mãe era dona de casa e seu pai era marceneiro, mas que nas horas vagas, era violeiro. Aos dois anos de idade, Clara ficou órfã de pai, que morreu num atropelamento. Quatro anos depois, a mãe de Clara morreu vítima de câncer. Passou a ser criada pela sua irmã mais velha, Maria Gonçalves, a “Dindinha”. Em 1956, aos 14 anos, Clara começou a trabalhar como tecelã na fábrica de tecidos Cedro & Cachoeira, na sua cidade natal para ajudar nas despesas da casa.
Sua vida sofreu a primeira mudança aos 16 anos, quando mudou-se às pressas para a casa de uma tia em Belo Horizonte, após seu irmão, José Gonçalves, conhecido como Zé Chilau, matar um ex-namorado de Clara, que difamou a moça pela pequena cidade por não aceitar o fim do namoro. Chilau passou vários anos foragido. Em Belo Horizonte, conseguiu um emprego numa fábrica de tecidos, e à noite estudava num curso para ser professora. Além disso, participava de um coral de uma igreja católica e cantava em festas e quermesses. Nessa época conheceu o músico e maestro Jadir Ambrósio (1922-2014), que a levou para se apresentar em programas de rádio de Belo Horizonte.
Em 1960, venceu a etapa mineira do concurso A Voz de Ouro ABC, e na etapa nacional, em São Paulo, ficou em terceiro lugar. O concurso abriu portas para a jovem Clara, cuja carreira artística estava começando. Entre 1963 e 1965, passou a se apresentar em clubes e boates de Belo Horizonte. Nessa época, assumiu o nome artístico Clara Nunes, usando o sobrenome de sua mãe já falecida. Com a acarreia artística em ascensão e os diversos compromissos, Clara deixou o emprego na fábrica de tecidos e os estudos. Uma apresentação no programa de Hebe Camargo, em 1963, rendeu a Clara o convite para apresentar o seu próprio programa de TV, o Clara Nunes Apresenta, na TV Itacolomi, de Belo Horizonte.
Clara Nunes deixou a capital mineira em 1965, e parte para o Rio de Janeiro com o intuito de alavancar a sua carreira e ganhar projeção nacional. No Rio, fez apresentações em programas de rádio e TV, em clubes e casas noturna do subúrbio carioca. No ano seguinte, em 1966, foi contratada pela gravadora Odeon que queria fazer de Clara Nunes, uma cantora romântica, uma versão feminina de Altemar Dutra, gravando um repertório essencialmente romântico e melodramático, e é claro, lucrativo para gravadora. O primeiro álbum de Clara foi lançado ainda em 1966, A Voz Adorável de Clara Nunes, com um repertório composto por boleros e sambas-canções imposto pela gravadora. O disco foi um grande fracasso comercial. Àquelas alturas, Clara Nunes já frequentava as quadras de escolas de samba através de amigos sambistas cariocas que conheceu. Em 1968, veio o segundo álbum, Você Passa E Eu Acho Graça, cuja faixa-título, um samba de Ataulfo Alves e Carlos Imperial, fez um sucesso razoável, mas insuficiente para que o disco tivesse boas vendas. Igualmente ao disco anterior, persistiu neste álbum a insistência da Odeon em Clara gravar boleros e canções românticas. O terceiro disco, A Beleza Que Canta, chegou às lojas em 1969, e seu desempenho comercial foi ainda pior que o de Você Passa E Eu Acho Graça. A situação de Clara ficou complicada dentro da companhia. Clara Nunes sentia-se insatisfeita com o que gravava, e ela mesma percebia a necessidade de dar um novo rumo à sua carreira. Chegou participar de festivais de MPB, flertou com a musicalidade ao estilo Jovem Guarda (que já estava em decadência), mas essas tentativas fracassaram.
A mudança na carreira de Clara ocorre a partir de 1970, através da ajuda do produtor e radialista Adelzon Alves. Ele percebeu a vocação natural de Clara para o samba, e via nela, um perfil de cantora para ocupar um espaço vago deixado de Carmen Miranda (1909-1955). Segundo Adelzon, depois de Carmen, não havia surgido até então nenhuma cantora na música brasileira que representasse o Brasil de forma autêntica, seja visual e musicalmente. Foi então que Adelzon ajudou Clara a criar um projeto de carreira, envolvendo tanto o aspecto mercadológico como artístico-cultural. Mercadológico por atender ajudar a criar um perfil de cantora de samba que ainda havia no mercado musical brasileiro, e artístico-cultural por partir de um ponto onde Carmen Miranda parou. Cabia a Clara fazer o resgate do samba e das tradições afro-brasileiras.
A partir de então Clara adotou um figurino afro-brasileiro: mudou o penteado, passou a usar vestidos longos e rendados, colares, guias de santo, turbantes. Musicalmente, seu repertório se voltou para algo mais brasileiro, ligado às nossas raízes culturais. Samba, jongo, choro, ritmos afro-brasileiros e até mesmo música nordestina passaram a fazer parte do repertório da cantora mineira.
Em 1971, a Odeon lançou o álbum Clara Nunes, o primeiro dentro da nova orientação artística de Clara, e o primeiro da cantora produzido por Adelzon Alves. A faixa “Ê Baiana” foi um grande sucesso nas rádios. Começava com este discos a ascensão de Clara Nunes. Em 1973, Clara Nunes, Toquinho e Vinícius de Moares (1913-1980) fazem a turnê O Poeta, A Moça e O Violão, que percorre o Brasil e depois parte para a Europa.
Clara Nunes quebra um tabu na indústria fonográfica com o álbum Alvorecer, em 1974, que vende mais de 400 mil cópias, e acaba com um mito machista de que cantoras no Brasil vendem poucos discos. Ela se tornou a primeira da música brasileira a vender mais de 100 mil cópias de um mesmo disco. No mesmo ano, Clara estreia com Paulo Gracindo (1911-1995) o espetáculo Brasileiro, Profissão Esperança, sobre a vida da cantora Dolores Duran (1930-1959), um sucesso de público e de crítica.
Durante toda a década de 1970, Clara Nunes lançou um álbum a cada ano, sempre com altos índices de vendas e emplacando canções nas listas das paradas de rádio de todo o Brasil. Clara figura entre as cantoras mais populares do Brasil e abre um espaço importantíssimo no mercado fonográfico para cantoras de samba. Gravadoras concorrentes passaram a investir nesse filão, como a Philips, que contrata Alcione (uma novidade na época), e RCA Victor com Beth Carvalho, que começara a a carreira nos anos 1960, mas por anos foi uma contratada da pequena gravadora Tapecar.
Em 1975, Clara Nunes casou-se com o poeta, compositor e produtor musical Paulo César Pinheiro. Antes de Paulo, Clara Nunes havia vivenciado um romance com o produtor Adelzon Alves.
Com a fama e o sucesso conquistados, Clara Nunes nutria o sonho de ser mãe. Mas esse o sonho de gerar um filho chegou ao fim em 1979, após Clara Nunes sofrer um terceiro aborto espontâneo por causa de miomas, o que fez a cantora passar por uma histerectomia, cirurgia para remoção de útero.
A convite de Chico Buarque, Clara Nunes integrou em 1980 um grupo de artistas brasileiros numa viagem a Angola, na África, onde fizeram algumas apresentações. Naquele mesmo ano, Clara lança o álbum Brasil Mestiço, que traz a música “Morena de Angola”, composta por Chico Buarque a pedido da cantora e inspirada na viagem a Angola.
Clara Nunes inicia a nova década com o prestígio em alta e com muitos trabalhos. Em 1981, estreia o espetáculo Clara Mestiça, dirigido pela atriz, cantora e diretora teatral Bibi Ferreira (1922-2019), e lança no mesmo ano o álbum Clara. O ano de 1982 é marcado para Clara por apresentações na Alemanha e no Japão, onde grava um programa especial para a TV japonesa, a NHK. Em setembro de 1982, Clara lança aquele que é o seu último álbum, Nação.
Meses depois, em março de 1983, Clara Nunes sofreu uma reação alérgica com um componente anestésico durante uma cirurgia de varizes. A cantora entrou em estado de coma e permaneceu internada por 28 dias na UTI da Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro. Nesse período, Clara foi alvo de espetacularização midiática e de uma sucessão de boatos a seu respeito. Infelizmente, em 2 de abril de 1983, Clara Nunes foi declarada morta em razão do choque anafilático. Seu corpo foi velado por mais de 50 mil pessoas na quadra da escola de samba Portela. Clara Nunes foi sepultada no Cemitério São João Baptista, no Rio de Janeiro.
Embora tenha morrido tão jovem, próximo de fazer 40 anos, Clara Nunes deixou um legado importante para a música brasileira. Seus recordes em vendas de discos quebraram o tabu de que cantoras no Brasil vendem poucos discos. Isso fez com que as gravadoras investissem mais e melhor nas cantoras.
Clara Nunes foi uma artista fundamental na defesa das religiões de matriz africana e da cultura afro-brasileira. Antes de Clara, outros artistas já haviam gravado canções com temas sobre a cultura e religiosidade afro-brasileiras. Porém, Clara Nunes foi quem melhor incorporou a temática afro-brasileira, tanto por meio visaual como por meio das canções que gravou. Ela não apenas cantou esses temas, ela vivenciava o que cantava, era envolvida com a umbanda e candomblé. Clara Nunes quebrou barreiras, combateu preconceitos e pavimentou caminho para que outros artistas também trilhassem e abordassem tais temas com mais plena liberdade.
Abaixo, confira dez álbuns essenciais para entender a obra de Clara Nunes.
Clara Nunes (Odeon, 1971). Após o bom êxito comercial do compacto com dois sambas-enredo, “Misticismo da África ao Brasil”, da escola de samba Império da Tijuca, e “Festa Para Um Rei Negro”, da escola de samba Salgueiro, a gravadora Odeon resolveu apostar no novo direcionamento de Clara Nunes voltado para o samba e a cultura afro-brasileira planejado pelo produtor e radialista Adelzon Alves. Este autointitulado álbum foi o primeiro dessa nova fase da cantora mineira. O repertório do disco é composto por canções de uma nova geração de compositores de samba que estava despontando como João Nogueira, Baianinho, Gisa Nogueira e Geovana. Mas o trabalho trouxe Clara Nunes fazendo releitura de canções dos veteranos, como “Sabiá”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, e “Feitiço de Orações” de Noel Rosa e Vadico. Graças ao sucesso da faixa “Ê Baiana”, o álbum vendeu mais que os três anteriores juntos, e tornou Clara Nunes conhecida em todo o Brasil. Começava aqui o reinado de Clara Nunes.
Alvorecer (Odeon, 1974). O ano de 1974 foi bastante movimentado para Clara Nunes. Estreou o espetáculo Brasileiro, Profissão Esperança, com o ator Paulo Gracindo, dedicado à vida de Dolores Duran, e que deu origem à gravação de um disco com o mesmo nome do espetáculo. No mesmo ano, Clara lançou um novo álbum, Alvorecer, que contém sucessos como “Conto de Areia”, “Meu Sapato Já Furou”, “Menino Deus” e a faixa título. O álbum chegou à marca de 400 mil cópias vendidas, um fenômeno comercial para o samba e representou a quebra do mito de que cantoras no Brasil vendem pouco discos.
Claridade (Odeon, 1975). Quem achou que o sucesso do álbum Alvorecer foi um “caso isolado”, enganou-se redondamente. Claridade superou as vendas do seu antecessor ao vender 600 mil cópias, uma marca que só Roberto Carlos conseguia alcançar. Claridade contém sambas antológicos falando de lendas afro-brasileiras (“O Mar Serenou”) e da crença da cantora nos orixás (“A Deusa dos Orixás”). Mas há também sambas falando de amor como “O Sofrimento de Quem Ama” e “Tudo É Ilusão”. Claridade traz ainda o samba “apocalíptico” de Nelson Cavaquinho, “Juízo Final”, gravado brilhantemente por Clara Nunes.
Canto das Três Raças (Odeon, 1976). Primeiro álbum produzido por Paulo César Pinheiro, também compositor e marido Clara Nunes; os dois haviam se casado em 1975. A faixa-título traz Clara Nunes numa interpretação imponente, cantando versos sobre as três raças (o índio, o negro e o branco) que formaram o povo brasileiro. Outras faixas famosas do disco são “Lama”, “Alvoroço no Sertão” e “Fuzuê”. Com mais de 500 mil cópias vendidas, Canto das Três Raças manteve Clara Nunes na lista dos grandes vendedores de discos no Brasil.
As Forças da Natureza (Odeon, 1977). A popularidade alcançada por Clara Nunes era tão grande que neste álbum, nem foi preciso colocar a imagem dela na capa. Mesmo assim, o álbum foi um grande sucesso comercial. “As Forças da Natureza”, faixa que dá nome ao álbum, expressa a revolta da natureza contra aqueles que a maltratam. No samba animado “PCJ (Partido Clementina de Jesus)”, Clara Nunes conta com a participação especial da homenageada Clementina de Jesus. O disco marca a estreia de Clara Nunes como compositora, dividindo a autoria de “À Flor da Pele” com Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós. Destaque também para a bela releitura de Clara para “Coração Leviano”, de Paulinho da Viola.
Guerreira (Odeon, 1978). Outro grande álbum na discografia cujo título acabou virando um codinome para a própria Clara Nunes. A música que intitula o álbum é de autoria de Paulo César Pinheiro e João Nogueira em homenagem a Clara Nunes, em que os versos são uma demonstração de amor e devoção da homenageada à umbanda, religião praticada pela cantora. De tão representativa, o título da música acabou virando o apelido de Clara Nunes. Outras faixas de destaque do disco são Candongueiro” e “Outro recado”.
Esperança (Odeon, 1979). O título faz uma alusão ao sonho de Clara Nunes em ser mãe. A capa mostra Clara toda feliz e sorridente com duas crianças. Infelizmente, esse sonho ela não conseguiu realizar. O começa o alto astral de “Banho de Manjericão” (de João Nogueira e Paulo César Pinheiro) um samba festivo que fala de rezas e simpatias populares para afastar o azar e o mal olhado. Em outro samba, “Na Linha do Mar” (d Paulinho da Viola), Clara canta que o seu amor tão sereno a protege de qualquer ingratidão neste mundo de ilusão. Em “Feira de Mangaio” (Sivuca e Glorinha Gadelha), Clara mostrou que não era apenas uma cantora de samba, mas que também tinha talento para cantar outros estilos, como o forró.
Brasil Mestiço (Odeon, 1980). Desde meados da década de 1970, Clara já vinha aos poucos diversificando musicalmente o seu trabalho, experimentando outras referências musicais, mas sem sair da órbita do samba, o foco central do seu trabalho. Brasil Mestiço é um álbum que já pelo título, reflete uma diversidade musical, onde Clara Nunes transita pelo samba, partido-alto, marcha-rancho e ritmos nordestinos como baião e coco. “Morena de Angola” foi composta por Chico Buarque a pedido de Clara, e foi um grande sucesso. “Viola de Penedo” é mais uma feliz experiência de Clara Nunes com forró, em que ela canta com grande desenvoltura. “Brasil Mestiço, Santuário da Fé” ressalta a importância das músicas e das danças afro-brasileiras como elementos de resistência do povo negro frente à opressão e o racismo num país tão desigual socialmente como o Brasil.
Nação (Odeon, 1982). Último disco de Clara, Nação prossegue com a intenção de Clara Nunes em ir além das fronteiras do samba, sem, no entanto, abrir mão do estilo que a fez famosa. A faixa-título exalta a ancestralidade do povo afro-brasileiro. “Ijexá” (de Edil Pacheco), aproxima Clara à musicalidade afro-baiana, e dá pistas do caminho que ela teria trilhado caso não tivesse morrido tão cedo. Neste disco, a escola de samba homenageada é a Império Serrano com “Serrinha”. “Novo Amor” (de Chico Buarque), uma bossa-nova cheia d romantismo, mostra a grande intérprete versátil que Clara Nunes era. “Cinto Cruzado” é um baião que trata das mazelas da seca no nordeste brasileiro e da exploração desumana da mão de obra sertaneja. A faixa “Mãe África” é uma interessante fusão de baião com musicalidade africana.
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