O segundo álbum dos Beastie Boys, Paul’s Boutique, é um dos grandes clássicos dos anos de ouro do hip-hop, elevando a arte do sampling para um novo patamar.
O hip-hop nasceu no sul do Bronx em meados dos anos 70 mas só a partir de ’81 desceu à baixa de Manhattan. Era a primeira vez que um DJ como Afrika Bambaataa tocava para um público maioritariamente branco. O curioso é que os punks (e demais fauna lá do sítio) acolheram de braços abertos um género tão diferente do seu, numa bonita cumplicidade de contraculturas.
Os Beastie Boys – putos do secundário, ainda – eram então uma banda de hardcore, com um EP gravado e digressões com a realeza punk (Dead Kennedys, Bad Brains, Misfits). Mas quando assistiram a essas noites de hip-hop em clubes como o Negril e o Roxy ficaram siderados com a nova estética. De tal maneira que abandonaram o punk e, sem mais delongas, transformaram-se numa banda de rap. Adam Yauch, Adam Harovitz e Michael Diamond eram agora MCA, Ad Rock e Mike D.
Quando em ’84 lançam o single “Puss Cooky” é já em hip-hopês que se expressam. Conhecem depois Rick Rubin, outro puto judeu apaixonado pelo hip-hop. Rubin dá uns toques na arte do gira-disquismo, tornando-se DJ dos Beastie Boys em alguns concertos. Entretanto, em conjunto com Russell Simmons (o primeiro magnata do negócio do hip-hop), Rubin funda a Def Jam, a mítica editora que se confunde com o hip-hop nova-iorquino dos anos 80. Os Beasties lá estão, na linha da frente, lado a lado com os Run-DMC, Public Enemy, LL Cool J e Eric B. & Rakim.
O seu álbum de estreia, License to Ill, de ’86, foi produzido por Rick Rubin e teve um sucesso retumbante, o primeiro LP de hip-hop a liderar a tabela de vendas. (You Gotta) Fight For Your Right (to Party!)” era uma sátira ao hedonismo descabeçado das Repúblicas Estudantis mas às tantas nem os próprios Beasties sabiam muito bem onde acabava a farsa e começava o espelho. “Girls” é tão divertida como misógina: “miúdas / para lavar a loiça / miúdas / para limpar o meu quarto / miúdas / para lavar a roupa / miúdas / e na casa de banho”. Nos concertos exibia-se uma stripper numa gaiola, banhava-se o público com cerveja e, last but not the least, erguia-se um pénis gigante. A crítica especializada não os levava muito a sério. Porque seria?
Até que uma traição mudaria tudo. Simmons e Rubin começaram a interferir na autonomia criativa dos Beasties e a açambarcar-lhes o dinheiro de direitos de autor. A ruptura é agora inevitável. Os Beastie Boys abandonam a Def Jam e perdem dois amigos.
Exilados em Los Angeles, assinam com a Capitol Records e começam a gravar o segundo álbum com os Dust Brothers como produtores (a dupla mágica que mais tarde produziria Odelay). Onde Licensed to Ill era despido e orelhudo, Paul’s Boutique é denso e caótico, devendo mais ao funk e ao R&B do que ao hard rock do disco de estreia.
No final dos anos 80, não só apareceu a tecnologia e o engenho para criar batidas complexas, como os custos de autorização dos samples eram ridiculamente acessíveis. Resultado: os anos de ouro do hip-hop, onde um só disco podia conter centenas de samples, mesclados com subtileza e originalidade. Neste período dourado, três produtores (ou equipas de produção) destacam-se sobre os demais: os dissonantes Bomb Squad (Public Enemy), o soalheiro Prince Paul (De La Soul) e os loucos Dust Brothers.
O festim de samples de Paul’s Boutique (vale tudo, até arrancar olhos) é um deleite para o melómano atento mas uma desilusão para os ouvidos mais preguiçosos. Sem o imediatismo pop de Licensed to Ill, o flop comercial era expectável, um preço justo para se livrarem do estigma de one hit wonders. Mesmo os críticos com mais má vontade foram obrigados a reconhecer: Paul’s Boutique é um dos expoentes máximos da arte de bem roubar. DJ Shadow, J Dilla, Madlib e os Avalanches são alguns dos prestigiados herdeiros.
As letras também são mais matizadas do que em Licensed to Ill. O humor, a provocação e a parvoíce ainda estão lá (e por isso amamos os Beastie Boys) mas há agora uma inédita ternura: uma homenagem à sua Nova-Iorque, tão suja e esquálida como mágica e vibrante, repleta de personagens maiores do que a vida. “Johnny Ryall” é um bom exemplo, um “vizinho” de Mike D. que dorme numa cama de cartão, crava moedas de 50 cêntimos para os seus pacotes de vinho, e recorda com saudade os seus tempos gloriosos de cantor rockabilly, antes de a vida lhe ter trocado as voltas. Esta empatia para com os seus protagonistas, por mais desgraçados ou infames que o sejam, nunca resvala para o panfleto ideológico (que mais tarde quisessem salvar o Tibete, achamos muito bem, mas nunca ninguém foi aos Beasties em busca de bom senso e sensibilidade).
Se as batidas são omnívoras, comendo de tudo – desde Curtis Mayfield até banjos hillbilly -, as palavras não lhes ficam atrás, citando tudo, desde os Flintstones a J.D. Salinger. Paul’s Boutique insere-se na mesma tradição pós-moderna dos Simpsons e dos filmes do Tarantino, obcecada pela cultura pop, reciclando-a em dúzias de citações, sabotando qualquer distinção estéril entre alta e baixa cultura.
No seu travo retro, Paul’s Boutique é também uma carta de amor à música dos anos 70, e, dentro dela, à música negra americana (samples orgânicos vindos da soul e do funk dominam o disco, dando-lhe calor e groove). Ou, se preferirem, uma homenagem ao amor pelos discos, às lojas de vinis, aos caixotes de LPs esquecidos, ao carinho de uma vida a construir uma colecção.
Ainda bem que as coisas correram mal com a Def Jam. Ainda bem que Paul’s Boutique foi uma desilusão a nível de vendas. Ainda bem que já não enchiam estádios. Os Beastie Boys conquistaram algo bem mais precioso: a total liberdade criativa. A integridade não tem preço. Não se negoceia.
Sem comentários:
Enviar um comentário