Em tudo o que pegam, Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe incutem detalhe e pormenor em quantidades discretas. Da mesma forma que o tempo passa e ninguém dá por ele, a música dos Kings Of Convenience entra pelos nossos ouvidos adentro sem que nós nos apercebamos do seu real valor.
Podemos encontrar partículas de amor em todo o lado. Não existe um único lugar no mundo que nunca tenha sido visitado pelo amor. O amor existe e chega a todos os cantos, adapta-se a todas as formas e manifesta-se em todos os tempos. Pode acontecer que, em determinado momento, o amor deixe de existir. Por vezes, a sua força perde intensidade e outros estados de espírito surgem para proteger as nossas fraquezas. Assim nascem o orgulho, o sossego e a paz. A verdade é que o amor nem sempre é possível. A sua beleza reside nessa realidade. O amor é uma substância rara, de valor infinito. É ele quem ver ter connosco – e não o contrário. Não podemos, nem devemos persegui-lo. O amor é incontrolável e quase sempre indomável, ao contrário da paz. A paz é uma decisão que resulta de uma reflexão. Ponderamos, estudamos possibilidades de ação e, no fim, decidimos se queremos a guerra, que é provocada pelo amor, ou se pretendemos a paz, que deriva da nossa aceitação da verdade.
Para Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe, esta é a regra de ouro da vida. Toda a gente tem de escolher entre o amor e a paz invariavelmente. Ainda que seja possível levar vidas em que as duas substâncias coexistem, apoiando-se uma na outra, há sempre um instante de decisão em que nos focamos numa matéria e preterimos outra. Ou o amor ou a paz. Depois desse momento, tudo é possível. É a vida a desvendar-se. O amor pode garantir a paz e a paz pode garantir o amor, mas o que é facto é que isso nem sempre acontece. Muitas vezes, os dois sentimentos conduzem-nos a pontos de chegada distintos.
O mais recente álbum dos King Of Convenience aborda este tema na perfeição, não tivesse sido batizado Peace Or Love. A dupla folk norueguesa não lançava música nova desde 2009, ano em que saiu Declaration Of Dependence. Por essa razão, este novo trabalho constitui um regresso (e dos bons), ainda que a musicalidade apresentada não seja muito diferente daquela que alicerça os LP’s anteriores do duo.
Os dias passam repentinamente. Se as pessoas não prestam atenção, não dão por eles. De repente, passou um ano. De repente, passaram seis anos. De repente, passaram doze anos. A passagem do tempo funciona de uma maneira particular. O tempo é discreto, mas está sempre perto de nós. Desde 2009, muita coisa aconteceu nas vidas de Erlend e Eirik, mas sobretudo na de Erlend. Para além de ter posto um ponto final nos The Whitest Boy Alive, Øye fez as malas, despediu-se de Bergen (e também de Berlim) e aterrou em Siracusa, na Sicília, em 2012. É na ilha italiana que, rodeado por raios de sol, amigos de todos os países e mergulhos em fundos de mar coloridos, começa a compor e a cantar em italiano. Dois anos depois, Erlend Øye viria a lançar Legao, o seu segundo álbum a solo. Mesmo estando longe de casa, o músico norueguês não deixou de acompanhar os processos criativos e musicais de Bergen. Erlend Øye é verdadeiramente um cidadão do mundo. Estamos a falar de uma pessoa que, efetivamente, tem direito a utilizar essa expressão tão mal aplicada por indivíduos vaidosos que, cheios de si e dos seus feitos de viajante, dizem conhecer o mundo. Øye conhece o mundo e faz por conhecê-lo. Esta vontade é percetível na música que o artista cria desde o início. Ao contrário do seu fiel amigo, Eirik tem levado uma vida artística mais calma. Nunca tendo verdadeiramente abandonado Bergen, o músico permaneceu nos Skog (atualmente Kommode), o grupo que havia criado com Erlend no fim da década de noventa. No entanto, Eirik e Erlend, como bons amigos que são, nunca perderam o contacto. Na verdade, o primeiro foi ajudando o segundo em várias ocasiões. Nesse contexto, Eirik viajou frequentemente para Itália e acompanhou as digressões a solo de Øye um pouco por todo o mundo. Para quem gosta da música destes noruegueses e nutre um carinho especial pelas vozes e sons que soltam, vale a pena fazer uma pausa para ver (e escutar) este vídeo.
Erlend e Eirik não se reencontraram em 2021 porque eles nunca chegaram a perder o contacto. 2021 é simplesmente o ano em que o duo lançou mais um álbum. Tendo em conta que, até 2009, os Kings Of Convenience só tinham três álbuns na carteira, o lançamento de Peace Or Love é um verdadeiro acontecimento musical. Falamos de uma banda que raramente tem opositores. As músicas que a dupla apresenta chegam, desde sempre, aos ouvidos de todos. Há poucos grupos assim, não há? Temos a certeza de que não existe uma pessoa que «odeie» ou «não suporte» os Kings Of Convenience.
O que é facto é que Peace Or Love demorou algum tempo a sair da gaveta. Quem o diz é o próprio Erlend Øye, que conta que a dupla começou a trabalhar no álbum em 2015. No entanto, em menos de três anos, os artistas sentiram-se cansados e perderam alento. A culpa foi da distância que separava Erlend e Eirik. Foi quando Feist chegou à Europa para realizar (mais) uma digressão que a dupla norueguesa voltou a pegar nas gravações embrionárias de Peace Or Love. Os três juntaram-se, realizaram alguns concertos em conjunto e, nos tempos livres entre espetáculos, escutaram as músicas já existentes e criaram outras que viriam a integrar o álbum – “Love Is A Lonely Thing” e “Catholic Country”.
É fácil entrar em Peace Or Love. Esta situação acontece, aliás, em todos os trabalhos dos Kings Of Convenience e das aventuras a solo de Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe. Os sons delicados que os artistas noruegueses produzem chegam a todos. Os vocais leves e as guitarradas dóceis prendem qualquer pessoa a um estado de absoluta calma e tranquilidade. A partir do momento em que escutamos a primeira faixa do álbum (“Rumours”), sabemos ao que vamos. Ao longo dos dez temas seguintes, o registo não muda e os nossos sentidos agradecem. Há composições mais mexidas do que outras (os singles “Rocky Trail” e “Fever”), no entanto, todas as canções estão ligadas à mesma impressão. Por esta razão, Peace Or Love, que não atinge sequer os 40 minutos de duração, passa a correr pelos nossos ouvidos. Tal como nos anteriores LP’s do duo, ao fim de cada audição, temos vontade de regressar ao começo do álbum e ouvi-lo outra vez.
Peace Or Love não é o melhor álbum feito pelos Kings Of Convenience. Acaba por ser uma tarefa difícil identificar o melhor trabalho da dupla nórdica porque, para além de todas as suas produções terem igual qualidade, ficamos com a sensação de que, independentemente do álbum, as músicas são todas iguais, na medida em que, geralmente, seguem a mesma composição e adereços. Em Peace Or Love, os Kings Of Convenience não arriscaram. Não arriscaram aqui, nem em qualquer outro trabalho assinado por eles. Mas será que precisavam? A música que os artistas de Bergen têm partilhado com o mundo não tem fugido deste género, no entanto, não há uma música do seu reportório que não tenha qualidade ou valor. Em tudo o que pegam, Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe incutem detalhe e pormenor em quantidades discretas. Da mesma forma que o tempo passa e ninguém dá por ele, a música dos Kings Of Convenience entra pelos nossos ouvidos adentro sem que nós nos apercebamos do seu real valor.
A forma como o duo aborda o amor (e as suas vicissitudes) é impressionante. Tanto em Peace Or Love, como em experiências anteriores, os artistas tornam o amor num jogo simples, de resposta fácil. Quando Erlend e Eirik cantam e tocam guitarra, sabemos o que temos de fazer para atingir a vida plena que desejamos. As onze faixas que edificam Peace Or Love estabelecem, claro, uma relação profunda com o mundo do amor, da paz e com o encontro e desencontro desses estados de alma. É impossível fugir deles.
Os Kings Of Convenience têm desde sempre a capacidade de construir imagens quase reais e quase palpáveis no interior sensorial dos seus ouvintes. Em Peace Or Love, voltam a fazê-lo. Da primeira faixa até à última (Washing Machine), os nosso sentidos transportam-nos para uma tarde de verão passada numa vila rural e marítima italiana; para uma manhã de leitura numa esplanada de rua francesa; ou para uma carruagem de comboio europeia que atravessa o verde dos Balcãs. Em todos estes cenários, damos por nós a pensar. Enquanto o sol queima a nossa pele ao de leve, refletimos sobre o que já vivemos e o que pretendemos viver. As reflexões encontram pensamentos e, de repente, sempre de repente, damos por nós a pensar sobre a paz e o amor. Sabemos que a vida é um conjunto de decisões. É desse reconhecimento que a pressão nasce. Somos obrigados a decidir da melhor forma possível, a fim de, no futuro, não colhermos arrependimentos. Quando somos confrontados com a escolha entre a paz e o amor, é impossível termos a certeza de qual é que é a opção certa. No ar fica a eterna questão. A paz? Ou o amor?
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