segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Nick Cave and the Bad Seeds – Murder Ballads (1996)


 

Sangue, morte, inocência e perigo, num disco conceptual sobre o crime, que viria a tornar-se no trabalho mais vendido de Cave até então

Nick Cave e as suas sementes más já tinham muitos anos de estrada e muito caminho percorrido. De Austrália aos Estados Unidos, da Alemanha ao Brasil, e do punk ameaçador às baladas góticas. Em 1994, é editado Let Love In, um disco que faz a síntese perfeita entre o passado e o que Cave viria a fazer nos discos seguintes, que marcariam a sua imparável subida ao estrelato. O grupo estava a começar a aparecer com mais regularidade na MTV, e parecia claro para todos que aquela era a oportunidade, o vai ou racha: o público internacional, com os ouvidos abertos pelo sucesso da música alternativa no início dos anos 90, estava atento, e disponível para o que viria a seguir.

As gravações do novo trabalho, aliás, começaram ainda nas sessões de Let Love In, e durariam até 1995. Mas as origens do que viria a ser este Murder Ballads vêm de ainda mais atrás, dos tempos da gravação de Henry’s Dream, de 1992. É nessa altura que Cave compõe “O’Malleys Bar”, um delírio assassino de quase 15 minutos que detalha um massacre que um homem alucinado comete num bar. Dos dez temas de Murder Ballads, este é um de sete totalmente originais, a que se juntam duas músicas tradicionais trabalhadas por Cave e um cover puro, que fecha o álbum.

“O’Malleys Bar” não estava necessariamente longe do universo de Cave, mas a sua duração e a sua intensidade tornavam difícil a sua inclusão em discos anteriores (por exemplo, faria pouco sentido em Let Love In). Daí a ideia: e que tal agarrar neste tema da morte, dos crimes – passionais ou outros – e fazer um álbum conceptual? Não era exactamente a jogada mais previsível para um projecto à beira do sucesso mainstream, mas Cave não estava particularmente preocupado com isso. E tinha um plano.

As canções trágicas ligadas ao crime têm uma longuíssima tradição nos países do centro e do norte da Europa, numa corrente estética que vem desde a Idade Média aos contos dos irmãos Grimm. A própria capa remete para esse universo: uma casinha isolada, perdida num bosque nevado, e os desenhos que acompanham as letras de cada canção são obras alemãs do início do século XX. Mais do que retratar crimes e acontecimentos actuais, Cave optou por olhar para o passado. Foi buscar temas tradicionais britânicos e norte-americanos, lendas e mitos urbanos, misturou tudo com a sua distorcida imaginação e serviu-nos este caldeirão fumegante de noite, sangue e velas que ardem até que não sobre ninguém para as apagar.

A abertura, com “Song of Joy”, marca logo o tom. A história é contada por um homem cuja família foi assassinada: a sua mulher e as suas três filhas, encontradas mortas quando o narrador chegou a casa. O tema desenrola-se de forma lenta, dolorosa, com palavras literárias e antiquadas, algumas tiradas da obra de John Milton. Baladas, sim, mas num sentido mais lato.

“Stagger Lee” traz um passo mais acelerado e um tom perigoso, contando a história americana do assassinato de Billy Lions pelo chulo negro Lee Shelton, no natal de 1895. Segue-se a verdadeira balada “Henry Lee”, um fantástico dueto com PJ Harvey, baseado num tema tradicional em que uma jovem mulher rejeitada mata o seu pretendente. A relação amorosa entre Cave e Harvey é um dos episódios mais falados do folcore rock, e começou por essa altura. Ao Guardian, Cave chegou a dizer que começou mesmo na gravação do vídeoclip para “Henry Lee”, que pode ver mais abaixo.

“Lovely Creature” é o esforço mais colectivo de todo o disco, com os créditos de composição a serem atribuídos a quatro dos músicos, além de Cave. O assunto? Acertaram, o assassinato de uma jovem rapariga pelo narrador, que a encontrou e a convidou inocentemente para dar uma volta.

As cordas no arranque de “Where the wild roses grow” não mentem. É uma verdadeira balada, clássica e muito bonita, em que a primeira voz do dueto pertence à maior exportação australiana desde os AC/DC: a estrela pop Kylie Minogue. O vídeo foi uma verdadeira bomba, tirando todo o partido de um exercício que apresenta uma mulher linda e inocente, e Cave como o seu perigoso e quase satânico par. A presença de Kylie e a força da composição trouxeram grande sucesso ao vídeo de apresentação, e “Where the wild roses grow” foi talvez a principal razão para o sucesso comercial do disco. Cave chegou mesmo a dizer às pessoas que ouvissem bem o álbum antes de o comprar, porque aquela doce – ainda que macabra – balada não era representativa de tudo o que Murder Ballads continha. Ainda assim, as vendas foram excelentes, assustando alguns compradores mais inocentes mas trazendo outros para o universo tão peculiar deste australiano.

O ritmo aumenta com a saltitante e delirante “The Curse of Millhaven”, narrada por Loretta, ou Lottie, uma rapariga de 15 anos que se diverte a assassinar moradores locais assim que o sol se põe. O piano regressa com “The Kindness of Strangers”, sobre os perigos de uma jovem solta no mundo, à mercê de estranhos dissimulados e mal intencionados. As palavras de abertura, lentas e tristes, contam tudo: “They found Mary Bellows, cuffed to the bed/ with a rag in her mouth and a bullet in her head/O poor Mary Bellows“.

De seguida temos a história da assassina “Crow Jane”, numa jornada de vingança contra os que lhe fizeram mal, na sua casa pobre à beira do rio. Perto de chegarmos ao fim do disco, surge a besta de violência que é “O’Malleys Bar”. Para fechar, como que para dar algum alívio aos ouvintes depois de tanta morte e tanta dor, Cave guardou a única verdadeira versão de Murder Ballads: “Death is not the end”, de Bob Dylan. Com vários convidados a cantar uma estrofe, como Kylie Minogue, PJ Harvey ou o inimitável Shane MacGowan, é um singalong puro e, curiosamente, a única música em todo o disco em que não acontece pelo menos uma morte.

Murder Ballads, à boleia de um série de factores, tornou-se o disco comercialmente mais bem sucedido de Nick Cave até então, e preparou o terreno para os trabalhos magníficos que se seguiriam, fazendo parte deste período de ouro que começou com Let Love in, em 1994, e durou até No more shall we part, de 2001. É o triunfo de um fantástico exercício de estilo e do próprio estilo que Cave vinha há muito aprimorando. A ligação entre amor e morte, entre beleza e horror, entre o perigo e a inocência.

Um disco incontornável na coleção de qualquer apreciador dos múltiplos talentos do senhor Nick Cave.

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