Quem era Nick Cave em 2004? Abattoir Blues/The Lyre Of Orpheus, disco duplo em que as rodelas não se complementam – já lá vamos – é a resposta. Os temas são os do costume, algures entre o amor e a morte e os labirintos até chegarmos a ambos os destinos. A inspiração não é absoluta, como noutros momentos, mas os momentos meritórios são, ainda assim, diversos.
Depois de um período particularmente inspirado em termos de álbuns de originais, mas com o menor Nocturama editado no ano anterior, Nick Cave chega a 2004 e perde o seu Bad Seed mais influente: Blixa Bargeld. O trabalho é duplo, mas Cave poderia perfeitamente ter editado primeiro Abbatoir Blues e, meses depois, anos à frente, The Lyre Of Orpheus – o primeiro é um disco de blues, rasgado, direto, pista lançada para aquilo que viria a ser, um par de anos depois, o projeto Grinderman; o segundo é uma obra intimista e mais lenta, embora sem a avalanche de negritude que os álbuns mais recentes do músico têm incorporado.
“Get Ready For Love”, logo a abrir, é perfeita: tem ginga, um coro gospel e é levada ao colo por uma bateria portentosa. A bitola, por ser um disco de Nick Cave com os Bad Seeds, é por si só elevada, e a faixa de arranque não desilude, mas os males da praxe atingem todos: por ser um disco duplo, seria difícil Abattoir Blues/The Lyre Of Orpheus ser imaculado e não ter momentos menores. Tem-nos, e aqui e ali o empolgamento perde para o aborrecimento – nada de grave, apenas em dose suficiente para retirar o disco dos cinco melhores álbuns de Cave, mas não o suficiente para definir a obra abaixo do patamar de ótima.
Este não é também o trabalho ideal para apresentar Nick Cave aos incautos, mas, para os fãs e frequentadores regulares desta praia, as ondas que por aqui se surfam são de degustação obrigatória. “There She Goes, My Beautiful Friend” e “Nature Boy”, na reta final do primeiro disco, antecipam “Fable of the Brown Ape”, faixa final de Abbatoir Blues e das mais desafiantes do trabalho.
The Lyre Of Orpheus, que entra depois, merece ser revisitado agora que tomámos contacto com um novo Nick Cave, o de Push the Sky Away e dos discos seguintes: mesmo que menos dramático, e com um Cave ainda mais cantor que pregador, há já referências religiosas e o chamamento pela força de um qualquer ser superior – se o músico canta para um Deus ou para uma mulher, só o próprio saberá (“Still your mind/Still your soul/For still, the fire of love is true/And I am breathless without you”, canta em “Breatless”).
“O Children”, no final, é o grande momento deste segundo álbum de 2004. De novo com coro gospel, é Cave em grande forma – poderia ser um tema de “Murder Ballads”, por exemplo, e melhor elogio que este é difícil encontrar.
Quem era Nick Cave em 2004? Definitivamente não era o mesmo dos anos anteriores, percebemos agora, em 2021, que também está longe de ser o mesmo músico da segunda década deste milénio. Abattoir Blues/The Lyre Of Orpheus, não sendo objetivo principal na discografia do australiano, é pedaço de música melhor que o que o antecedeu (Nocturama) e o que se seguiu (Dig, Lazarus, Dig!!!). Por esta altura Cave cria também os Grinderman e arrisca tudo numa persona mais blues-rock. Depois, vieram uns anos mais calmos. E em 2013, volta-se a fazer história…
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