segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

The Fall – This Nation’s Saving Grace (1985)

 

O oitavo álbum dos Fall, This Nation’s Saving Grace, é abrasivo mas acessível. O rabugento Mark E. Smith deixando-se amaciar pela senhora Brix Smith.

A célebre máxima de Mark E. Smith “se for eu e a tua avó no bongo, já são os Fall” não deixa de ser verdadeira: dezenas de músicos entraram e saíram da banda mais tóxica de Manchester, sem que alguma vez perdesse um grão de identidade (moldada à imagem e semelhança do seu perpétuo líder). Não se trata sequer de um despotismo esclarecido. Ao bom velho estilo de um James Brown, ou de um Captain Beefheart, el-rei Dom Smith XIV sempre governou a sua banda com a mais absolutista das tiranias.

Os contributos criativos dos seus súbditos nunca foram, porém, ignorados; foram apenas filtrados pela sua (despótica) visão. Quando Brix Smith (esposa do Grande Líder e, por isso, imperatriz) entra para os Fall em 1983, traz consigo uma sensibilidade mais melódica, aceite pelo seu Amo e Senhor. O pós-punk dissonante e hipnótico – herdeiro dos Velvet e dos Can – não desaparece mas os salpicos de rockabilly e de pop gótico trazidos pela americana Brix amaciam algumas arestas.

O pico de acessibilidade acontece, porventura, com Nation’s Saving Grace de ’85. Ponha-se “acessibilidade” com umas valentes aspas pois a entaramelada voz de Mark Edward Smith – como quem canta bêbado num karaoke manhoso – e a repetição minimalista que atravessa o disco (motorika explicado ao ignorante povo) – afunila o alcance deste disco. Se Nation’s Saving Grace fica no ouvido, não é em qualquer um, que isto das orelhas tem que se lhe diga (descansem, boa gente, não é Ed Sheeran).

O simples facto de o álbum abrir com um instrumental gótico (“Mansion”) e de encerrar com uma variação do mesmo tema (“To Nk Roachment: Yarbles”) revela uma sofisticação inédita nos Fall (se fosse outra banda a fazê-lo Mark logo a acusaria de maricagem londrina pequeno-burguesa). Os sintetizadores modernaços de “L.A.” – como  quem passeia pela Sunset Strip com um cadáver no porta-bagagens – são também inesperados: Smith é um orgulhoso primitivista, quanto mais rude e sujo melhor; o que raio está ali a fazer um sequenciador à New Order!? Já a colagem lo-fi de “Paintwork” – os sons da televisão ao fundo captados num gravador comprado na feira do Relógio – é mais consentânea com o brutalismo dos Fall. “I am Damo Sazuki” vai pelo mesmo caminho, homenageando a repetição hipnótica dos Can com uma caricatura orgulhosamente grosseira.

Mark E. Smith não sabe distinguir um dó de um ré mas a música que ouve na cabeça é claríssima, que remédio têm os seus vassalos senão dar-lhe corpo. O seu teclista tem formação clássica? É irrelevante. Na sua banda parecerá uma criança a martelar o piano ao calhas. O guitarrista quer fazer um pequeno solo? A lata de Guiness que Mark lhe arremessa fá-lo depressa mudar de ideias (a seguir irá buscá-la, constitui a base da sua alimentação).

Mark não canta, mas também não fala; no meio é que está a virtude. E como se a sua anti-voz não fosse suficientemente crua, Smith ainda a escangalha mais com um roufenho megafone. Há tanto whisky e cerveja nas suas cordas vocais que houve quem já acusasse álcool no sangue só por ouvir Fall na viagem. Smith não é bem um vocalista, é atitude e personalidade, é os Fall.

Como de costume, as letras não são muito inteligíveis. Mas de uma coisa temos a certeza: Mark está zangado, contra tudo e contra todos, qual Ferrão do pós-punk. Claro que há alvos preferenciais para a sua fel: a ufana Londres, a pompa da middle class, a pedante academia. Mas sobeja-lhe misantropia suficiente para arrasar a sua própria working class: anestesiando-se no bingo, entorpecendo-se em barbitúricos e má televisão. Ninguém escapa à sua acidez viperina, por isso o amamos tanto.

O seu anti-intelectualismo não deixa de ser curioso, ele próprio é um literato auto-didacta: por cada grade de cerveja, manda um romance do Ballard abaixo. Se odeia com todas as forças a turba universitária, é porque desconfia da educação domesticada e despreza a fanfarronice académica. Essa tensão revela-se na relação com os próprios fãs. Como alguém escreveu, Mark gostaria de levar a sua arte aos proletários, quando chega sobretudo à burguesia intelectual. Nada que muito apoquente o senhor Smith. O rancor é a lente com que olha o mundo. Sua bílis a acre tinta com que o destrói.


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