quinta-feira, 9 de março de 2023

Como Salif Keita quase cometeu o maior pecado do homem

 

salif keita

Salif Keita estava dentro de um contentor que servia de camarim à beira do Rio Douro, aproximei-me duvidando que pudesse estar só, alvitrei que meditasse. Decidi ficar um pouco à distância, observando-o, ele de olhos fechados, uma túnica e um barrete redondo colorido na cabeça. Subitamente abriu os olhos na minha direcção, sorriu mostrando a alvura dos dentes, fez-me um ligeiro sinal para que me aproximasse.

Recordo-me que, para ajudar a quebrar o gelo que ambos sentíamos, lhe ter dito que o considerava um dos maiores fenómenos musicais de África, que o sabia calculista na forma como se tornou num dos maiores casos de sucesso internacional da world beat, criador de inspirados momentos de encontro da espiritualidade africana com a modernidade tecnológica. Agradeceu o elogio e aclarou: “Limito-me a fazer o que o meu coração dita”.

De origem nobre, descendente do rei guerreiro que lançou os alicerces do império do Mali, Salif Keita nasceu albino e foi, à nascença, rejeitado pela família. Acredito que foi por isso que me disse: “Recuso-me a ser escravo do passado, pois só somos nobres quando somos úteis”. Condenado à vivência da exclusão familiar, foi obrigado a mendigar, cantando no mercado.

“Todos os dias percorria, a pé, os 25 quilómetros poeirentos que separavam a minha terra natal, Djoliba, da capital, Bamako, para viver de caridade. Foram tempos muito difíceis. Imaginas o que é ser rejeitado pela própria família? Isso marcou-me profundamente. Mas como não me podia matar, arranjei coragem e impus-me com a minha voz”   

Salif Keita falava com indisfarçável decoro por ter vencido tais provações, referindo-se ao seu canto como “o brotar de um bonito fogo-de-artifício”. Quando se referia a Carlos Santana como sendo “um músico que amo muito por ser tão fantástico e espiritual, que não é um Deus nem um anjo mas está muito perto disso”, alguém o chamou para iniciar o espectáculo.

Qual prece ou ritual, juntou as mãos e, impetuoso, ajoelhou-se no chão exclamando: “Se me tivesse suicidado, como tantas vezes pensei, nunca teria chegado até aqui. Ousei, fui o primeiro a querer propagar a música africana e consegui-o. Se tivesse morrido isso teria levado muito mais tempo. Digo-te, amigo, só não me suicidei porque segui o lado esquerdo do peito que me precaveu”. Como, perguntei-lhe, igualmente doce: “Avisando-me que o suicídio é o maior pecado do homem”.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Knifeworld - 2018-02-07 - Cruise to the Edge, Royal Caribbean Brilliance of the Seas

  Knifeworld February 7, 2018 Cruise To The Edge, Colony Club, Royal Caribbean Brilliance Of The Seas En Route from Costa Maya, Mexico to Ta...