Salif Keita estava dentro de um contentor que servia de camarim à beira do Rio Douro, aproximei-me duvidando que pudesse estar só, alvitrei que meditasse. Decidi ficar um pouco à distância, observando-o, ele de olhos fechados, uma túnica e um barrete redondo colorido na cabeça. Subitamente abriu os olhos na minha direcção, sorriu mostrando a alvura dos dentes, fez-me um ligeiro sinal para que me aproximasse.
Recordo-me que, para ajudar a quebrar o gelo que ambos sentíamos, lhe ter dito que o considerava um dos maiores fenómenos musicais de África, que o sabia calculista na forma como se tornou num dos maiores casos de sucesso internacional da world beat, criador de inspirados momentos de encontro da espiritualidade africana com a modernidade tecnológica. Agradeceu o elogio e aclarou: “Limito-me a fazer o que o meu coração dita”.
De origem nobre, descendente do rei guerreiro que lançou os alicerces do império do Mali, Salif Keita nasceu albino e foi, à nascença, rejeitado pela família. Acredito que foi por isso que me disse: “Recuso-me a ser escravo do passado, pois só somos nobres quando somos úteis”. Condenado à vivência da exclusão familiar, foi obrigado a mendigar, cantando no mercado.
“Todos os dias percorria, a pé, os 25 quilómetros poeirentos que separavam a minha terra natal, Djoliba, da capital, Bamako, para viver de caridade. Foram tempos muito difíceis. Imaginas o que é ser rejeitado pela própria família? Isso marcou-me profundamente. Mas como não me podia matar, arranjei coragem e impus-me com a minha voz”
Salif Keita falava com indisfarçável decoro por ter vencido tais provações, referindo-se ao seu canto como “o brotar de um bonito fogo-de-artifício”. Quando se referia a Carlos Santana como sendo “um músico que amo muito por ser tão fantástico e espiritual, que não é um Deus nem um anjo mas está muito perto disso”, alguém o chamou para iniciar o espectáculo.
Qual prece ou ritual, juntou as mãos e, impetuoso, ajoelhou-se no chão exclamando: “Se me tivesse suicidado, como tantas vezes pensei, nunca teria chegado até aqui. Ousei, fui o primeiro a querer propagar a música africana e consegui-o. Se tivesse morrido isso teria levado muito mais tempo. Digo-te, amigo, só não me suicidei porque segui o lado esquerdo do peito que me precaveu”. Como, perguntei-lhe, igualmente doce: “Avisando-me que o suicídio é o maior pecado do homem”.
Sem comentários:
Enviar um comentário