O segundo álbum de originais dos Jane’s Addiction, Ritual de lo Habitual, foi um dos primeiros exemplares de rock alternativo a chegar às massas. O sismo de baixa frequência prenunciando Nevermind…
Nos anos 80, para o bem e para o mal, Los Angeles foi a capital do rock. Em Hollywood, na Sunset Strip, dominava o chamado hair metal: uma mistura entre melodias açucaradas, guitarras exibicionistas e maus penteados que não soube envelhecer bem. Onde o glam dos seventies era discreto (apenas maquilhagem e purpurina), o glam metal descobre as calças de licra. O deboche de Bowie era culto, orgias e coca em exposições de pop art; já os Motley Crue escreviam devassidão com c de cedilha. Era assim a cena da Strip: vã, decadente e histriónica, como a década de nylon que a viu nascer.
Mas se descêssemos para os bares da baixa de Los Angeles, encontraríamos uma fauna diferente, mais desalinhada e subterrânea. As tribos eram muitas – punks, góticos, metaleiros, malta do rock alternativo – e andariam todas à pancada se não houvesse um inimigo comum a uni-las – o postiço hair metal. O cruzamento do rock apunkalhado com o funk estava então em voga: os Red Hot e os Fishbone sabiam burilar um bom groove; os nossos Jane’s Addiction também.
O frontman Perry Farrell e o baixista Eric Avery, mais velhos, vinham do pós-punk, privilegiando o experimentalismo e a depuração; o guitarrista Dave Navarro e o baterista Stephen Perkins, mais novos, eram fãs de hard rock, fascinados pela sua pueril pirotecnia. Dessa fusão de sensibilidades, nasceu o ornitorrinco Janes’s Addiction: art rock com solos à Van Halen, o elo que faltava entre o hair metal dos oitenta e o alternative rock dos noventa.
O segundo álbum de estúdio, Ritual de lo Habitual, é a obra-prima dos Jane’s Addiction. O lado A é funky e roqueiro, albergando “Been Caught Stealing” (junte-se uma bateria à Happy Mondays com um cão a ladrar e o tema mais célebre dos Jane’s estará pronto a servir). O lado B é quase prog, com as suas longas epopeias e um conceito autobiográfico a ligá-las: três dias de sexo e drogas a três (Farrell mais as duas garotas que assomam na capa) e o luto por uma overdose fatal (o espelho com a mãe de Farrell – também artista, também morta precocemente – torna tudo mais pungente).
Por mais deliciosamente hedonista que seja o lado A (“ain’t no wrong, ain’t no right, only pleasure and pain”), não escondemos a nossa preferência pelo místico lado B: mais bizarro, mais melódico, mais mágico. “Three Days” é um “The End” para os anos 90, jim-morrissiana na sua viagem chamanística. “Then She Did” começa doce como uma brisa de Verão (com a sua elegante orquestração de cordas à Beatles pós-Revolver) mas evolui para uma dissonância quase free jazz. “Of Course” brinca com a música tradicional judaica, o chamado klezmer, ou não fosse Farrell judeu dos quatro costados (o seu verdadeiro nome é Peretz Bernstein). A guitarra acústica e exótica à Led Zeppelin III faz o resto da magia…
Mas não se deixem enganar pelas referências monoteístas, a alma dos Jane’s Addiction é pagã, celebrando o milagre da vida, o viço da carne, a vertigem do excesso e da transgressão. Ritual de lo Habitual tem esse lado de chamamento e transe colectiva. A bateria de Stephen Perkins é tribal, convidando ao desregramento dos sentidos. A voz de Farrell é ácida e aguda: uma luz intensa que ofusca. O baixo cortante de Eric Avery é a lâmina afiada que escalpa os inimigos da tribo. A guitarra de Navarro é pistoleira como os Poison mas elegante como os Television (a seguir aos Jane’s Addiction, passou a ser socialmente aceite gostar, ao mesmo tempo, dos Guns e dos Smiths). Os concertos são exóticas cerimónias onde tudo pode acontecer: batucadas e cânticos ancestrais, strippers exuberantes em cópulas imaginárias, Farrell e Navarro beijando-se obscenamente na boca.
Juntos são os Jane’s Addiction, filhos dos hippies em espírito, pais do alternative rock por destino histórico. Farrell é o ideólogo, revitalizando o rock como contracultura, agregando todas as tribos de exilados no festival de Lollapalooza, comandando o assalto ao mainstream. Antes de milhões de exemplares do Nevermind entrarem pelos quartos dos adolescentes adentro, o ariete Jane’s Addiction rompeu o primeiro portão. Não haveria o messias Cobain sem o profeta Farrell. Porque tudo estava assim escrito.
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