Cinquenta anos é uma idade que merece respeito, sobretudo quando essas cinco décadas acabam por sedimentar um tempo posterior e infinito, o tempo da imortalidade. Uma imortalidade em eterna construção.
Pois é verdade: há efemérides que não podem passar por nós envoltas no véu do esquecimento. Comemorar cinquenta anos de vida sem que o tempo tenha deixado marcas de desgaste e de padecimento, não é para todos. É, aliás, para poucos. Um dos escolhidos, aquele que lhe reservámos para hoje, é um disco de 1971 (pois claro) gravado pelo nosso grande e próximo amigo, apesar das “léguas a nos separar”. Trata-se de Construção, de Chico Buarque de Hollanda.
Uns anos antes da gravação desse disco histórico da música popular brasileira, um poeta que também deixou percurso feito na canção do nosso país irmão escreveu O Operário em Construção. Pouco une objetivamente as duas obras, o poema e o disco. No entanto, somos livres de acreditar que a palavra que se repete no título de ambas pode suscitar algumas concordâncias de significado, algumas pontes de contacto e de concórdia. Essa aproximação não é trabalho dos artistas, antes de quem os ouve, os lê e os entende. No poema de Vinícius de Moraes há um excerto que diz “Ah, homens de pensamento / Não sabereis nunca o quanto / Aquele humilde operário / Soube naquele momento! / Naquela casa vazia / Que ele mesmo levantara / Um mundo novo nascia / De que sequer suspeitava.” Postas em causa essas duas matérias-primas, foi este o ângulo que escolhemos para abordar um álbum que nunca parou de nos surpreender, que parece ser felino ao ponto das muitas vidas que teve e tem. Volta e meia faz sentido voltarmos a ouvir o que o construtor Chico operou naquele tempo difícil de além mar.
O disco começa num tom de urgência inesperado. Em “Deus Lhe Pague”, o ritmo parece perseguir-nos (a perseguição criminosa ditava a lei, como sabemos, naquele tempo não tão distante assim), inquieta-nos, e na canção há um grito que quer libertar-se, dando uma ambiência inusitada a um novo disco do menino Chico Buarque, mais habituado a ver a banda passar do que a passar engajado contra ela. O momento era sério e exigia seriedade. Era melhor e mais própria a adoção de outra atitude. Menos samba, e mais chinelo no pé. Menos festa inconsequente, e mais combate. Um novo Chico erguia-se e “Um mundo novo nascia” na criação artística do conhecido carioca. O que escrevera o poeta, cumpria-se agora na carreira do músico.
Por muito que os tons sambistas de algumas composições continuem plenas de vigor no repertório do álbum, há um esgar de desespero transversal a todas elas, assim como às demais que o completam. Era hora de trocar a pena, aguçando-a ao ponto da crítica mordaz e pouco velada dos dez temas de Construção serem punhais em riste apontados à carne do poder. Em consequência, o regime militar sangrou algumas gotas de sangue. O propósito estava cumprido sem que a arte musical e poética de Chico Buarque fossem substituídas por mera propaganda panfletária. Trata-se, se assim quisermos entender o disco, de um comício travestido em obra musical. Intenso, forte e belo, mergulhado “na noite da solidão”, com a promessa de que “Enquanto eu puder cantar / Alguém vai ter que me ouvir”.
Canções como “Deus Lhe Pague”, “Cotidiano”, “Desalento”, “Construção” (que tema, que canção, que letra maravilhosa!), “Valsinha” ou “Minha História (Gesubambino)” são apenas múltiplas maneiras de se idealizar a perfeição, seja ela melódica ou lírica. E depois, há ainda uma outra que se destaca por ser crua e muito reveladora do sofrimento sentido na primeira pessoa e, portanto, na própria pele. “Samba de Orly”, tema que com a sua estranha beleza perturbadora nos dá conta do tempo vivido no exílio (a letra acabou por ser parcialmente cortada), foi composto por Chico, Toquinho e Vinícius de Moraes (de novo o poeta!) e diz coisas que desarmam qualquer pessoa, numa espécie de conversa triste com um seu irmão: “Mas não diga nada / Que me viu chorando / E pros da pesada / Diz que eu vou levando / E vê como é que anda / Aquela vida à toa / E se puder me manda / Uma notícia boa.” A notícia do fim da ditadura militar, como sabemos, demorou a chegar, mas também foi ela a fazer nascer um novo Chico, um novo artista em construção. Por muito que tenha sentido o desprazer da dor em que viveu mergulhado, ele e o seu país, a obra que daí nasceu, para o ouvinte atento, valeu bem a pena. Por vezes, como sabemos, é preciso atravessar o deserto para se reconhecer o encanto do mar.
Por tudo isto, ainda hoje te ouvimos, caro Chico! E estamos (estaremos sempre) gratos a este e a outros momentos que foste sabendo escrever, cantar e gravar. Uns do lado certo da barricada, e por isso saíste vitorioso. Outros, também é bom dizer, no fio de uma navalha artística menos interessante, contrária à inovação do som que tropicalisticamente acabou por reinar na MPB futura. Mas essa é uma outra história, que por agora não urge contar.
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