quinta-feira, 6 de abril de 2023

Flying Lotus – Cosmogramma (2010)


 

O terceiro disco de Flying Lotus leva a arte dos beats instrumentais para um novo patamar de sofisticação.

A cena beat de Los Angeles aconteceu a partir de 2006 à volta do bar Airliner em Lincoln Eights (um bairro popular ainda não descaracterizado pela gentrificação). Era nas noites de quarta-feira que o pessoal se encontrava (as chamadas noites Low End Theory), a meca de todos os apaixonados pela arte de fazer um bom beat. No hip-hop convencional a batida, por muito inventiva que seja, serve sempre o MC. Mas magos como J Dilla e Madlib foram emancipando-na desse jugo com discos maravilhosos de hip-hop instrumental. Nos seus últimos anos de vida Dilla mudou-se de Detroit para Los Angeles, deixando uma marca indelével nos músicos que o conheceram. Morreu antes da cena beat explodir mas as sementes já haviam sido lançadas. Diga-se, porém, que o movimento vai para lá da cultura do hip-hop, entrando por outros territórios como a electrónica. Essa alergia a fronteiras estilísticas rígidas é uma das suas principais características.

Flying Lotus, fundador da independente Brainfeeder, foi um dos principais protagonistas de todo este zum-zum. O seu segundo disco chama-se Los Angeles, a soalheira cidade onde tudo aconteceu. Mas foi o álbum seguinte, Cosmogramma, que despertou elogios mais rasgados.

Não se gosta de Cosmogramma à primeira, avise-se já, mas o disco cresce a cada audição até se tornar viciante. Os seus beats são absurdamente originais, não só no traço pincelado como nas próprias tintas, timbres exóticos inventados pela sua insaciável curiosidade. Cada tema tem a sua estética pessoal e intransmissível, com poucas continuidades com a tradição musical conhecida. Mais do que um músico, Flying Lotus é um deus criador, moldando no barro outros mundos possíveis.

Os samples e a programação continuam a ser centrais mas agora há uma presença forte de instrumentos ao vivo, desde o baixo virtuoso do seu amigo Thundercat até ao saxofone free jazz do seu primo Ravi Coltrane. A voz é a excepção e não a regra mas quando aparece é sempre bem-vinda. Veja-se o caso de “… And the World Laughs With You”, no qual Thom Yorke sussurra com aquele seu timbre de alma penada: “preciso de saber que estás aí / preciso de saber que me estás a ouvir” (talvez o momento mais arrepiante do disco). Dá assim voz à dor de Flying Lotus, cuja mãe partira há pouco. Não se pense, porém, que o tom dominante do álbum é macambúzio. Mesmo “Galaxy in Janaki” – mais íntimo e macabro porque gravado com sons de máquinas hospitalares – faz o luto com uma estranha esperança.

Um segundo tema atravessa o disco, uma homenagem à sua tia-avó Alice Coltrane, de cujos ensinamentos espirituais precisa agora mais do que nunca. Daí a harpa, etérea e mística, procurando a avó Alice no outro lado do espelho.

Cosmogramma nada tem de depuração, antes pelo contrário. A sua estética do excesso, onde cada beat alberga dezenas de camadas, pede bons auscultadores e uma escuta atenta e paciente. A beleza não nos é dada, somos nós que a conquistamos, por isso o nosso cérebro fica todo vaidoso. É merecido. Ficamos mais espertos a cada audição.

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