Resenha
Niger EP 1 & 2
Álbum de Mdou Moctar
2023
Compilação
Se há um artista cujo show eu gostaria não apenas de ver, mas também de recomendar aos interessados em assistir ao C6 Fest em São Paulo no mês que vem, é o guitarrista tuaregue Mdou Moctar. Para quem não sabe do que se trata, estou me referindo a um músico que vem conquistando cada vez mais admiradores pelo mundo (inclusive de nomes de peso, como Dweezil Zappa) com seu virtuosismo e sua música, uma mistura de rock e tishoumaren (que, por falta de uma tradução mais precisa, vem sendo chamado de “blues do deserto”). Nascido no Níger e batizado Mahamadou Souleymane, Mdou Moctar tem sido chamado de “Hendrix do Saara”. Apesar de ser uma expressão com clara intenção elogiosa, ela encapsula uma comparação injusta e um tanto preconceituosa. Ele é Mdou Moctar, um guitarrista brilhante e extraordinário. E ponto. Isso é o que importa. Entretanto, o próprio músico reconhece a influência de Jimi Hendrix (coincidentemente Mdou Moctar também é canhoto) em seu estilo e em seu trabalho. Mas ele também costuma citar outras referências em suas entrevistas, como Van Halen, Led Zeppelin e Prince, além, é claro, de Ali Farka Touré (multi-instrumentista do Mali, falecido desde 2006), da música tradicional tuaregue e outras formas africanas de música com guitarras, como o assouf e a takamba. A título de contextualização, vale a pena contar resumidamente como o seu trabalho chegou até os ouvidos do Ocidente: no Níger, assim como em várias outras regiões da África, as longas viagens de ônibus são comuns; e não é raro ver tanto um passageiro ouvindo música no celular quanto o sujeito ao lado dele no banco perguntando “o que é que você está ouvindo?”. Se o som cair no gosto do vizinho de assento, é certo de que o arquivo musical será compartilhado via Bluetooth. É assim que a produção musical autóctone e independente do continente africano circula por lá. E foi dessa forma que a canção “Tahoutine” foi parar na coletânea Music From Saharan Cellphones, lançado em 2011 pelo selo Sahel Sounds, e que, depois, teve algumas de suas faixas regravadas em inglês pela banda Everclear. Se Music From Saharan Cellphones abriu as portas para Mdou Moctar fora da África, o LP Afrique Victime, lançado em 2021 pela Matador Records (Interpol, Queens of the Stone Age, Yo La Tengo) e produzido por Michael "Mickey" Coltoun, que é também o baixista (e único membro não-africano e branco) de sua banda, é o seu grande trabalho até o momento. O álbum conquistou a aclamação de publicações como Rolling Stone, Pitchfork, New York Times, The Guardian e Consequence of Sound. Muitos críticos chegaram a dizer que Afrique Victime era o “Disco do Ano” em 2021 (algo com o qual eu concordo integralmente). E já que o guitarrista, acompanhado de Coltoun no baixo, Ahmoudou Madassane na guitarra base e Souleymane Ibrahim na bateria, vem ao Brasil mostrar sua arte, este é um bom momento para avaliar seus únicos lançamentos este ano (até agora): os EPs Niger, volumes 1 e 2. Como o próprio nome dos EPs sugere, os discos trazem um material que, além de ter sido gravado entre 2017 e 2021 em solo nigerense (atenção aqui: “nigeriano” é relativo à Nigéria, não ao Níger), foi registrado também dentro de um contexto cultural específico do país. Explicando melhor: as faixas ou são takes de ensaios, ou são gravações ao vivo feitas durante casamentos e piqueniques. Não, você não leu errado: na região ao sul do Saara (Níger, Mali, Chade, Sudão) a forma mais comum dos artistas locais se apresentarem ao vivo é em casamentos ou em outras comemorações familiares ao ar livre. O conceito por trás desses discos é muito interessante, mas será que funciona? Se tirarmos nossas conclusões a partir das duas primeiras músicas do volume 1, as “drum machine versions” de “Imouhar” e “Chismiten”, provavelmente não. Ambas, somadas, dão 21 minutos de Mdou Moctar improvisando/solando sobre loops de bateria eletrônica. Por melhor que seja o músico, as chances do ouvinte se cansar antes das faixas chegarem ao final e passar para a seguinte são grandes. O melhor que os EPs têm a oferecer são as gravações ao vivo, mas mesmo essas não formam um conjunto equilibrado. E a qualidade das gravações, que não é das melhores, interfere no resultado dependendo da canção. As músicas mais calmas, em alguns casos acústicas, são as mais prejudicadas. Cito aqui, como exemplo, “Iblis Amghar” e “Asditke Akal” (ambas do volume 2). Por outro lado, a parcela do tracklist em que Mdou Moctar brilha na companhia de todos os músicos de sua banda, seja num ensaio, seja em uma performance ao vivo, é arrasadora: no volume 1 temos “Sibidoul” e “Afrique Victime” (sempre muito melhor ao vivo que em estúdio); e, no volume 2, “Ibitilan”, Chimoumounim” e “Azawad”. Mas os momentos mais tocantes dos dois discos são aqueles em que Mdou Moctar dedilha sua guitarra (ou violão) acompanhado exclusivamente pelo bater das palmas da audiência. Nesses casos, é o público que espontaneamente o acompanha (ao contrário das baterias eletrônicas das “drum machine versions”) proporcionando o ritmo certo e no tempo correto, se convertendo, assim, num participante ativo da performance em vez de ser um mero expectador. Aqui temos então a música em sua dimensão festiva e como forma de conexão (ou melhor, de comunhão) entre pessoas. Impossível não sentir vontade de acompanhar as palmas durante a audição de “Afelan” e, principalmente, da belíssima “Layla”, aqui numa versão muito superior à que encontramos no disco Afrique Victime. De qualquer forma, eu não recomendaria esses EPs como porta de entrada para os não-iniciados no trabalho de Mdou Moctar. Esse papel ainda cabe muito bem ao belíssimo LP Afrique Victime, sobre o qual ainda pretendo falar em detalhes aqui no 80Minutos. Até pelo formato escolhido - dividir a obra em dois extended plays prensados em vinis amarelo e verde -, não há dúvidas de que o público-alvo são colecionadores já íntimos de sua arte. Mesmo assim, quem puder ir vê-lo com sua banda no C6 Fest, não perca a chance. Infelizmente, para meu lamento, a produção do evento não o escalou para a edição reduzida do festival que ocorrerá no Rio de Janeiro.
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