sábado, 1 de abril de 2023

“Selvagem?” (EMI-Odeon, 1986), Os Paralamas do Sucesso

 


O ano era 1985, e os Paralamas do Sucesso gozavam de alto prestígio. A apresentação do trio brasiliense na primeira edição do Rock in Rio, em janeiro daquele ano, foi apoteótica. O segundo álbum da banda, O Passo do Lui, lançado em 1984, era um sucesso comercial inquestionável, havia vendido mais de 200 mil cópias e quase todas as faixas do disco viraram hits.

Contudo, apesar de todo o sucesso, os Paralamas no fundo se mostravam inquietos, um tanto quanto incomodados. Percebiam que toda a estética new wave que predominava no cenário roqueiro nacional naquele momento, e no qual também estavam inseridos, estaria se esgotando. Ao invés do som “palatável” da new wave dos dois primeiros álbuns, o grupo buscava apostar em algo diferente para o próximo trabalho. O vocalista e guitarrista Herbert Vianna sentia um profundo vazio criativo para compor, queria ir além dos temas pessoais e adolescentes. Mas a agenda interminável de shows não permitia que os Paralamas pudessem ter um tempo adequado para compor material para o próximo disco do jeito que pretendiam.

Porém, em outubro de 1985, um fato acabou dando o tempo que os Paralamas precisavam para pensar o próximo disco, mas não bem da maneira que queriam. O baterista João Barone sofre um acidente de carro em Porto Alegre e fratura a perna esquerda. A banda acabou tendo que suspender as apresentações e cancelar compromissos por alguns meses. Enquanto Barone se recuperava, Bi Ribeiro e Herbert Vianna ensaiavam na casa da vovó Ondina (avó de Bi), onde ensaiavam bases rítmicas e grooves, sem se preocuparem com letras. Naquele momento, estavam pesquisando novas sonoridades e ouvindo bastante reggae como os discos de Yellowman e Dr. Alimantado.

Bi Ribeiro, João Barone e Herbert Vianna: apresentação antológica dos Paralamas
na primeira edição do Rock in Rio, em 1985.
Desses ensaios instrumentais, um dos primeiros frutos foi a música “Alagados” que nasceu de um riff de guitarra. A letra de “Alagados”, Herbert havia feito depois de ter criado a base instrumental, e segundo ele, parecia letra de samba. Barone havia ouvido a música e teve a mesma impressão e achou que cairia bem inserir tamborins. Herbert havia enviado uma fita demo com uma base instrumental para Gilberto Gil colocar. Poucas horas depois, Gil telefona para Herbert e dita pelo telefone os versos da letra que acabara de escrever: era a canção “A Novidade”. E assim, aos poucos, as ideias foram fluindo, Herbert tendo novas ideias para compor e o repertório do novo disco foi ganhando forma. Entre fevereiro e março de 1986, os Paralamas entraram no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, para gravar o novo álbum sob a produção de Liminha.

Em abril de 1986, Selvagem? chegou às lojas. A primeira música de trabalho foi “Alagados”, que pegou o público e a crítica de surpresa. A música fugia dos padrões vigentes do rock nacional da época. Falando das mazelas das favelas brasileiras, “Alagados” trazia na sua sonoridade uma alta carga de brasilidade, com referências do carimbó e das guitarradas do Pará, e os tamborins do samba carioca. A música chocou o público roqueiro, mas agradou o público das camadas mais populares. Não foi à toa que no primeiro dia de execução, “Alagados” teve 57 execuções no Rio de Janeiro e 67 na Bahia.

A capa de Selvagem?  confirmava que os Paralamas pretendiam romper com a estética anglo-americana reinante nos discos do rock brasileiro da época. Na capa, um garoto magrelo de cabelos escovados pra frente, um sorriso idiota no rosto com uma camiseta cobrindo a cintura e o púbis, segura um arco e flecha. Ao fundo, uma barraca de acampamento.  O tal garoto era Pedro Ribeiro, irmão de Bi, e a foto foi tirada quando ele era adolescente, no final dos anos 1970.

Paralamas na sessão de fotos para o álbum Selvagem?.
“Alagados” é quem abre o álbum e é seguida por “Teerã”, que fala da agonia das crianças vitimadas pela guerra que castigava a capital iraniana; eram os tempos da guerra Irã e Iraque que já durava mais de seis anos. Com letra de Gilberto Gil, “A Novidade” destaca a fome e a folia convivendo juntas numa mesma sociedade (“Ó mundo tão desigual / De um lado este carnaval / Do outro a fome total). Após três faixas sobre temas tão duros, um pouco de humor pra aliviar ouvinte com “Melô do Marinheiro”, seguido de uma faixa “irmã”, “Marinheiro Dub”, uma versão instrumental de “Melô do Marinheiro”, com guitarras “praieiras”, ecos e efeitos de voz. E o tom crítico volta à carga com “Selvagem” num reggae costurado pelas guitarras distorcidas de rock. 

“A Dama E o Vagabundo” discorre sobre a vida cotidiana conjugal, enquanto que o ska rock “There’s A Party” é a única faixa em inglês do disco e também a única que remete à new wave dos dois primeiros álbuns dos Paralamas. “O Homem” aborda a contradição humana, e “Você”, uma regravação de um sucesso de Tim Maia, ganha uma versão reggae com os Paralamas e fecha o álbum. Isso no LP, pois a versão cassete de Selvagem? veio com uma faixa a mais,“Teerã Dub”, versão instrumental de “Teerã”, cheia de efeitos e ecos, e é quem fecha o álbum em versão cassete. Mais tarde, a versão CD também incluiu “Teerã Dub”.


Os Paralamas e o produtor Liminha (o segundo da direita para esquerda) recebendo disco de ouro
pelas vendas de Selvagem?
Selvagem? foi um trabalho ousado dos Paralamas. Promoveu a ruptura da banda com o padrão new wave que os próprios Paralamas ajudaram a propagar no rock brasileiro. Ao invés de sentar sobre os louros da fama conquistados com os dois primeiros discos calcados nos dogmas do punk e new wave, preferiram remar contra a corrente, optando por uma estética mais terceiro-mundista. Apesar de Selvagem? ser na prática um disco essencialmente de reggae, foi a partir dele que os Paralamas se distanciaram das referência inglesas e americanas de rock, e passaram a navegar em outros mares musicais nos álbuns posteriores, se aproximando dos ritmos caribenhos, afro-brasileiros e africanos, tendo o reggae como um fio condutor para todas essas conexões rítmicas. O álbum revela um Herbert Vianna mais maduro e mais contestador como compositor, ao escrever letras mais engajadas, mais politizadas.

Com Selvagem?, os Paralamas encontraram a maturidade, se consagraram como artistas e calaram as más línguas que afirmavam que o trio não passava de uma mera cópia do The Police.  A partir de Selvagem? os Paralamas antecipam a retomada do processo de fusões rítmicas no rock nacional interrompido pela geração dos anos 1980, mas que viria com toda força nos anos 1990 com Skank, Chico Science & Nação Zumbi, O Rappa entre outros.

Faixas:
  1. "Alagados"(Herbert Vianna – Bi Ribeiro – João Barone)
  2. "Teerã" (Herbert Vianna – Bi Ribeiro – João Barone)
  3. "A Novidade" (Gilberto Gil - Herbert Vianna – Bi Ribeiro – João Barone)
  4. "Melô Do Marinheiro" (João Barone – Bi Ribeiro)
  5. "Marujo Dub" (João Barone – Bi Ribeiro)
  6. "Selvagem" (Herbert Vianna – Bi Ribeiro – João Barone)
  7. "A Dama E O Vagabundo" (Herbert Vianna – Bi Ribeiro)
  8. "There’s A Party" (Herbert Vianna)
  9. "O Homem" (Herbert Vianna – Bi Ribeiro)
  10. "Você" (Tim Maia)
  11. "Teerã Dub" (Herbert Vianna – Bi Ribeiro – João Barone)



Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Burt Bacharach & Elvis Costello - "Painted From Memory" (1998)

  “Burt é um gênio. Ele é um compositor de verdade, no sentido tradicional da palavra; em sua música você pode ouvir a linguagem musical, a ...