quarta-feira, 24 de maio de 2023

“A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado” (Polydor, 1970), Mutantes

 


Na virada de 1969 para 1970, o Tropicalismo já era coisa do passado. Com Caetano Veloso e Gilberto Gil “convidados” a se mandarem do Brasil pelo regime ditatorial militar, indo buscar exílio na Inglaterra, o movimento tropicalista estava morto e enterrado. No entanto, o movimento havia deixado um valioso legado que influenciaria tudo que se produziria na música brasileira nas décadas seguintes.

A banda Mutantes, um dos principais expoentes do Tropicalismo, procurava a seu modo seguir caminho próprio após o fim do movimento que abalou a produção cultural do Brasil no final dos anos 1960. Mesmo findado o movimento tropicalista, o que não faltou foi trabalho para o trio paulista naquele ano de 1969. A banda viajou para a França, onde participou do MIDEM (Mercado Internacional de Discos e Editores), em Cannes, e ainda se apresentou no Teatro Olympia, em Paris, e num programa de TV. Em julho de 1969, os Mutantes haviam iniciado uma temporada no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, o espetáculo multimídia Planeta dos Mutantes, que a princípio tinha o propósito de rodar pelo Brasil, mas devido ao custo do espetáculo, tornou-se inviável. Ainda naquele ano, participaram do 4º Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, com a canção “Ando Meio Desligado”, que na classificação final ficou em 10º lugar.

Em outubro de 1969, os Mutantes deram início às gravações do seu terceiro álbum de estúdio, A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado, no estúdio Scatena, em São Paulo, tendo no comando da produção Arnaldo Saccomani.

Os Mutantes, da esquerda para a direita: Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias. 

A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado chegou às lojas em março de 1970, trazendo em sua capa uma fotografia inspirada numa gravura de Gustave Doré (1832-1883) para uma passagem do poema A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). A ideia partiu da mente criativa de Cláudio César, irmão mais velho de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, e também um talentoso construtor de instrumentos musicais e inventor. No quintal da casa de seus pais, os três irmãos cavaram uma cova e fizeram uma lápide de isopor. Para a iluminação, puseram um spot de luz dentro da cova. A fumaça era de uma fogueira que eles fizeram para realçar um ambiente sombrio. Quem aparece saindo do túmulo falso com o peito nu é Arnaldo, enquanto Rita e Sérgio, são as duas figuras de pé, vestidas num manto, que na verdade eram colchas de chenille. Nas cabeças, ambos usaram tiaras de folhas de louro.

Mas polêmica mesmo foi a contracapa, em que Arnaldo, Rita e Sérgio aparecem deitados numa cama tomando café da manhã, acompanhados do baterista Dinho, de pé, vestido de militar nazista tomando um gole de café numa caneca. A foto foi tirada na cama dos pais de Arnaldo e Sérgio. Durante a sessão de fotos, a mãe dos dois músicos, Clarice Baptista, que não sabia de nada, adentrou o quarto e quase desmaiou quando viu a cena, digamos, “dantesca”, ao menos para ela. Aliás, ”dantesca” é apropriado já que o termo é relativo a Dante Alighieri, cuja obra principal inspirou o título do álbum.

A música que abre o álbum é “Ando Meio Desligado”, a mesma com a qual os Mutantes participaram do 4º Festival Internacional da Canção, em 1969. Ela começa com uma percussão executada por ninguém menos que Naná Vasconcelos. Os primeiros versos parecem se referir sutilmente aos efeitos da maconha: “Ando meio desligado / Eu nem sinto meus pés no chão”. Os teclados tocados por Arnaldo Baptista e a guitarra de Sérgio Dias fazem um “duelo” na reta final da música.

A polêmica foto dos Mutantes na cama que chocou a mãe dos irmãos Arnaldo e Sérgio.

A faixa seguinte, “Quem Tem Medo De Brincar De Amor”, trata sobre a descoberta do sexo na adolescência, numa época em que a virgindade era tabu. “Ave, Lúcifer” é inspirada numa passagem bíblica, a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e faz referência ao sexo. No verso “Prometo abrir o meu amor macio...”, a palavra “abrir” foi censurada, talvez porque os censores acreditaram que fosse uma associação com vagina. Um ouvinte mais atento vai perceber que no áudio, a palavra “abrir” foi apagada, criando um curtíssimo vazio sonoro no verso cantado por Rita Lee.

“Desculpe, Babe” se tornou outro grande sucesso do álbum e da carreira dos Mutantes, e conta com Naná Vasconcelos tocando bongô. Em “Meu Refrigerador Não Funciona”, um blues rock debochado e pesado, com pinceladas psicodélicas, Rita Lee canta aos berros inspirada em Janis Joplin, enquanto Arnaldo encarna um cantor negro americano de blues. A base instrumental sensacional serve de sustentação para Arnaldo cantar desesperado sobre o seu refrigerador que não funciona.

“Hey Boy” é uma balada bem ao estilo dos primórdios do rock’n’roll nos anos 1950, conta a vida de um jovem que leva um boa vida sustentado pelo pai rico, usa jaqueta importada e desfila com seu carro novo na Rua Augusta, famoso ponto de encontro dos jovens da cidade de São Paulo, entre as décadas de 1950 e 1960. “Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo”, composta por Roberto Carlos e Erasmo Carlos especialmente para os Mutantes, traz na letra, clichês bem condizentes à filosofia hippie como amizade, flor, esperança e paz.

Uma das músicas mais debochadas e hilárias já gravadas pelos Mutantes foi a regravação que o trio paulista fez para “Chão De Estrelas”, canção que fez sucesso na voz de Sílvio Caldas em 1937, e que é um clássico do cancioneiro brasileiro. A versão dos Mutantes ganhou arranjos fantásticos e muito doidos do maestro Rogério Duprat (1932-2006), cheio de colagens sonoras como banda marcial, ruído de avião, relógio cuco, tecido rasgando, e mais outras loucuras. Para completar, Arnaldo Baptista canta de maneira jocosa, imitando a impostação de voz do veterano Sílvio Caldas (1908-1998). Quem não gostou da galhofa do jovem trio paulista foi o apresentador de TV Flávio Cavalcanti (1923-1986), que furioso, quebrou o disco dos Mutantes diante das câmeras.

Os Mutantes fizeram uma versão debochada de "Chão de Estrelas",
 sucesso de Sílvio Caldas (foto), de 1937. A brincadeira despertou a fúria
do apresentador de TV Flávio Cavalcanti.

“Jogo De Calçada” é um pop psicodélico de versos um tanto quanto surrealistas: “Mas eis que pingo a pingo a chuva chegou / Na rua de espelho que a água molhou / O menino que correu, cruzou e caiu...”. “Haleluia” mistura música sacra, rock e humor, mas já dá sinais sutis da orientação para o rock progressivo que os Mutantes iriam tomar mais adiante. O álbum termina com “Oh! Mulher Infiel”, faixa instrumental que possui andamentos diferentes e que alternam som pesado e distorcido com a delicadeza do ritmo lento do piano. 

A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado inicia um processo de transformação e ao mesmo tempo de transição na carreira dos Mutantes. Livres das amarras tropicalistas, mas carregando na bagagem a experiência adquirida com elas, os Mutantes começam a andar com as próprias pernas, direcionam o seu trabalho para uma sonoridade mais embebida no psicodelismo, porém adicionando mais peso, graças às linhas de baixo de Liminha e ao virtuosismo do baterista Dinho. Aliás, diga-se de passagem, Liminha e Dinho, que antes eram músicos de apoio, após A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado, foram efetivados na banda, e os Mutantes passaram a ser um quinteto.

O processo de transição musical permaneceria nos dois álbuns seguintes, Jardim Elétrico (1971) e Mutantes E Seus Cometas No País Do Baurets (1972), que mantiveram a mesma linha estilística de A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado. Depois disso, com a saída de Rita Lee em 1972, os Mutantes tomariam de vez o caminho para o rock progressivo, abrindo mão da irreverência que marcou o grupo, e praticando uma musicalidade mais séria e burocrática.

Faixas
Lado 1

  1. "Ando Meio Desligado" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
  2. "Quem Tem Medo de Brincar de Amor" (Arnaldo Baptista - Rita Lee)
  3. "Ave, Lúcifer" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Élcio Decário)
  4. "Desculpe, Babe" (Arnaldo Baptista - Rita Lee)       
  5. "Meu Refrigerador Não Funciona" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)

Lado 2                                                                                                                                       

  1. "Hey Boy" (Arnaldo Baptista - Élcio Decário )
  2. "Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo" (Erasmo Carlos - Roberto Carlos)
  3. "Chão de Estrelas" (Orestes Barbosa - Sílvio Caldas)
  4. "Jogo de Calçada" (Arnaldo Baptista - Ilton Oliveira - Wandler Cunha)     
  5. "Haleluia" (Arnaldo Baptista)
  6. "Oh! Mulher Infiel" (Arnaldo Baptista)

Mutantes: Arnaldo Baptista (baixo, teclados e vocais), Rita Lee (vocais, percussões e efeitos) e Sérgio Dias (guitarras, baixo e vocais)



"Ando Meio Desligado"

"Quem Tem Medo de Brincar de Amor"

"Ave, Lúcifer"

"Desculpe, Babe"

"Meu Refrigerador Não Funciona" 

"Hey Boy"

"Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo"

"Chão de Estrelas"

"Jogo de Calçada"

"Haleluia"

"Oh! Mulher Infiel"

"Ando Meio Desligado", com os Mutantes 
ao vivo no programa "Som Livre 
Exportação", da TV Globo, em 1971.

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