sexta-feira, 19 de maio de 2023

Carne Doce – Interior (2020)

 

A banda renovou o seu som e apresenta um pequi gostoso para se saborear a qualquer hora e a qualquer instante. Está cada vez mais sumarenta, esta Carne Doce.

A nossa banda predileta de Goiânia está de regresso. Com novo álbum em carteira, Salma Jô, Macloys Aquino e restantes membros resolveram trilhar um caminho que representa, se assim se pode dizer, um desvio na continuidade no seu percurso musical. Apesar da expressão parecer contraditória, julgamos haver nela uma boa síntese da substância musical deste recente Interior. Melhor do que explicar o que nele existe, é ouvir e tentar entender os doze novos temas do disco. No entanto, uma coisa é certa: são deliciosos e cheios de vigor. A fruta da capa do álbum será, porventura, a representação gráfica disso mesmo.

Interior, como a própria palavra indica, remete para a ideia de uma certa introspeção, daí entendermos o álbum, sobretudo depois de o ouvirmos várias vezes, como uma espécie de novelo enrolado para dentro. A expressão em itálico pressupõe uma ideia quase inconcebível, mas parece-nos acertada, mesmo assim, como forma de expressar o que sentimos quando Interior começa a ser também um pouco nosso, quando também nós o interiorizamos de acordo com a nossa própria sensibilidade, as nossas idiossincrasias, a nossa maneira particular de ouvir todo e qualquer objeto sonoro. Nesse restrito sentido, Interior talvez seja o disco, de toda a discografia da banda, que mais nos diz respeito, porventura por ser igualmente aquele que parece ser o mais introspetivo.

Porém, Interior surpreende por ser, entre outras coisas, um disco mais eclético do que os anteriores, trazendo novidades de estilo e de ritmo espalhadas por várias das faixas do álbum. Essa vertente mais pop, se assim quisermos dizer, enobrece essa expressão, ao contrário do que é costume, por ser uma pop adulta, de bom gosto e muito bem executada. Toda a banda e todos os seus instrumentistas estão no topo do seu jogo, plenos de confiança e sabedoria, incluindo-se nesse lote a voz da carismática Salma Jô. Tão diferente está agora a voz de Salma, tão mais expressiva e madura! De facto, é muito bom ouvir o som de uma banda competente!

Outra das marcas características (e novas, se tivermos em conta os discos anteriores) desta recente proposta da banda de Goiânia, é o predomínio de importantes linhas de baixo e de bateria (são enormes, tanto Aderson Maia como Fred Valle), sendo que ambos os instrumentos percorrem de forma transversal o grosso dos temas, marcando-os (e com eles todo o álbum) indefectivelmente. O groove de Interior vem daí, amparado com as delicadas e também marcantes guitarras de Macloys. O início de “Hater” é exemplar daquilo que dizemos. Alguns temas têm largos períodos instrumentais (“Temporal” é o melhor exemplo disso) e a voz de Salma aparece para cantar letras com substância, afinadíssima, delicada, perdendo alguma da aspereza de outros trabalhos, cada vez mais límpida e transparente. Cada vez mais uma referência.

Mas vamos às canções, àquelas que nos agarram e não nos largam facilmente, às que insistem até que a adoção se consuma. São várias, felizmente, e bem distintas umas das outras. Assim, de rajada, as quatro primeiras, potentes armas rítmicas e melódicas: “Temporal”, “Interior”, “Hater” (que belo e inesperado tema com tons de samba, atento aos modernos ódios tão presentes nas redes sociais) e a libidinosa “Garoto”, mostrando pela primeira vez os dotes vocálicos de Macloys. Mais do que uma canção, “Garoto” é uma aula de sedução malandra e saborosa. “Passarin”, de modo bem diferente, também cativa na sua cadência mais solta, mais desligada, mais tranquila. Aí é a voz de Salma a comandar. E nessa onda menos dançante, mas mais etérea, sobressai a lindíssima e lírica “A Partida”. Tudo nela é perda e dor, desencanto, mas também algum conforto que a memória por vezes pode trazer em situações de carência ou privação. A letra, na nossa opinião, é das melhores de todo o disco. Uma última referência para “A Caçada”. Há nela uma misteriosa inquietação deliciosa, ou não fosse o tema baseado num conto de Lygia Fagundes Teles.

Interior é um disco mais luminoso do que os anteriores, mais tranquilo, muito mais capaz de proporcionar aos Carne Doce um acréscimo significativo de público. Se assim for, é bem merecido. Por nós, resta-nos continuar a ouvi-lo, esperando que os vírus deste mundo nos deixem em sossego para que voltem a Portugal. Em breve, e muitas vezes. Cá os esperaremos, quando chegar o dia. De braços abertos!



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