sexta-feira, 26 de maio de 2023

Discografias Comentadas: Rita Lee & Tutti Frutti

 

Discografias Comentadas: Rita Lee & Tutti Frutti
Em sentido horário: Luis Carlini, Emilson, Lee Marcucci, Rita Lee e Lucinha Turnbull

Como mês passado apresentei a Discografia Comentada de Arnaldo Baptista, achei justo trazer aqui o período mais rocker da carreira de Rita Lee pós-Mutantes, aquele junto com o Tutti Frutti. São quatro álbuns de estúdio e um ao vivo, todos gravados entre uma guerra de egos gigante entre ela e o guitarrista Luis Carlini, mas que pariu clássicos atemporais do rock nacional.

Contextualizando a história, Rita sai (ou é despedida) dos Mutantes, e funda as Cilibrinas do Éden junto de Lúcia “Lucinha” Turnbull, considerada a maior fã de Mutantes do Brasil. Após apresentarem-se abrindo para os próprios Mutantes durante o Phono 73, no dia 10 de maio de 1973, que teve uma discreta reação da plateia, o projeto acaba sendo deixado de lado. Lúcia conhecia o pessoal do grupo Lisergia, composto por Lee Marcucci (baixo), Emilson (bateria) e Luis Sérgio Carlini (guitarras), e inspiradíssimos na versão Glam de David Bowie, transformam a união Cilibrinas + Lisergia no Rita Lee & Tutti Frutti, e assim começa a sequência de lançamentos.


Atrás do Porto … Tem Uma Cidade [1974]

A estreia de Rita ao lado da Tutti Frutti é uma das grandes joias da música nacional dos anos 70. A formação da Tutti Frutti aqui conta com Lucinha Turnbull (vocal de apoio, guitarra, violão de 12 cordas e palmas), Luis Carlini (guitarra, guitarra havaiana), Lee Marcucci (baixo), mais a adição dos músicos contratados pela Philips Mamão (percussão), Paulinho Braga (bateria) e Juarez (saxofone). O álbum abre com o manifesto rock ‘n’ roll de “De Pés No Chão”, com Rita já mandando todo mundo longe, em uma das primeiras letras feministas da história do rock nacional, e com um show a parte da Tutti Frutti, destacando a guitarra de Luis Carlini. Mais rock ‘n’ roll raiz com pitadas progressivas surge em faixas como “Pé De Meia” e nos sucessos “Mamãe Natureza”, canção ainda dos tempos das Cilibrinas, e “Tratos à Bola”, com a letrinha da menina que cresceu e deu tratos à bola saindo por aí, em uma clara alusão à sua saída dos Mutantes. Falando nisso, se os Mutantes achavam que Rita não havia como tocar na fase progressiva, então impressione-se com o talento da menina tocando piano, moog e mellotron na sensacional “Yo no Creo Pero …”, uma das melhores canções de toda sua carreira, inclusive considerando os próprios Mutantes. O trecho do solo de Carlini é de chorar, com harmônicos de guitarra e violões fazendo a cama para a entrada do solo, complementada por mellotron e piano, no melhor estilo Yes. Outra faixa com boas inspirações progressivas, e com uma letra muito interessante é “Eclipse do Cometa”. As intervenções dos teclados de Rita nessa canção lembram até Gentle Giant. A ruivona emociona nos vocais da sensacional “Menino Bonito”, acompanhada primeiramente apenas pelo seu piano, e depois, pelo lindo arranjo orquestral de Ely Arco Verde, mostrando que além de ser uma exímia vocalista, também é uma pianista de mão cheia. Ely também comanda os arranjos do maior sucesso do LP, “Ando Jururu”, faixa swingante que antecipava a onda disco em quase 4 anos, e que posteriormente foi regravada por nomes como Raimundos e Kiko Zambianchi. Falando em dançar, tente se segurar (e ao mesmo entender) a completa “Círculo Vicioso”, uma quebradeira swingada que faria Sly Stone se encantar. O instrumental dessa música é muito complexo, e a participação de Luis Cláudio nas guitarras jazzísticas, misturadas com flautas e moog, é um baque no cérebro. Os vocais sensuais de Rita e Lucinha no centro lembram muito o que a Blitz faria ano depois. Paulada de um disco excelente, na minha opinião tão bom quanto seu predecessor, o aclamado Fruto Proibido, que saiu no ano seguinte.

Discordando com a forma como a Philips interferiu na produção de Atrás do Porto … Tem Uma Cidade, Rita sai da Philips e assina com a Som Livre, recebendo em abril de 1975 um contrato milionário (a época) para gravar um disco nos moldes mais profissionais possível. Pouco antes, em janeiro de 1975, se apresentam com sucesso no festival Hollywood Rock, deixando registradas as canções “Mamãe Natureza”, “Minha Fama De Mau” e “E Você Ainda Duvida?” no álbum Hollywood Rock. Em seguida, ela e a Tutti Frutti ficaram semanas criando o novo álbum em uma casa a beira da represa de Ibiúna, o que permitiu parir um dos maiores discos da história do rock nacional.


Fruto Proibido [1975]

Não é meu disco preferido de Rita Lee, mas é inegável a qualidade e o investimento que Fruto Proibido teve para alçar a ruiva para além dos patamares de ex-Mutante, alcançando assim o status de Rainha do Rock. A Tutti Frutti é reformulada, agora com Franklin Paolillo (bateria e percussão), Guilherme Bueno (piano e clavinete) e os vocais de apoio de Rubens e Gilberto Nardo. Aqui, a fusão rock ‘n’ roll com progressivo casa perfeitamente, ainda mais com a produção de Andy Mills. Faixas como “Dançar Para Não Dançar”, “Fruto Proibido” e “Pirataria” trazem todo o vigor do rock, com letras muito críticas, embalo para dançar pela casa e refrãos grudentos. A última conta com a flauta de Manito, que também toca órgão na enigmática e progressiva “O Toque”, com seu lindo momento central saindo das cavernas progressivas de Yes e King Crimson, e que foi co-escrita em parceria com Paulo Coelho. Paulo também colabora no excelente blues de “Cartão Postal”, onde Carlini dá mais um presente para os ouvidos. Falando em Carlini, claro, fechando essa obra prima, “Ovelha Negra”, a faixa que melhor define Rita, mais um desabafo por sua saída dos Mutantes, e que eternizou um dos solos de guitarra mais conhecidos do rock nacional. Outros grandes sucessos ficaram para “Agora Só Falta Você”, com a guitarra de Carlini marcando época, e mais uma letra bastante feminista, posteriormente regravada por Maria Rita e Pitty, e “Esse Tal de Roque Enrow”, faixa também co-escrita ao lado de Paulo Coelho, com uma ótima presença do saxofone de Manito. E por falar em feminismo, que tal a linda homenagem para “Luz del Fuego”? Essa bela homenagem à vedete Dora Vivacqua é um rockzão para macho nenhum botar defeito, com uma letra fantástica que exalta todas as qualidades das mulheres, e que foi posteriormente regravada por Cássia Eller. Quem fazia isso no Brasil nos anos 70? Só Rita! Fruto Proibido vendeu mais de 200 mil cópias logo em sua tiragem inicial, e é considerado até hoje um dos melhores discos nacionais de todos os tempos.

Em 1976, saiu o compacto duplo com as inéditas “Lá Vou Eu” – “Caçador De Aventuras” e “Status”, complementado por “Ovelha Negra”, e o single de “Arrombou a Festa”, faixa que esculhamba com os grandes nomes da música popular brasileira com muito bom humor, e tendo “Corista de Rock” no lado B.

Tutti Frutti na época do Fruto Proibido

Entradas e Bandeiras [1976]

Seria difícil manter nível de Fruto Proibido em seu próximo lançamento, mas Rita e a nova versão da Tutti Frutti, com o duo Carlini, Marcucci e os irmãos Nardo adicionados agora de Paulo Maurício (teclados, sintetizador, vocais) e Sergio Della Monica (bateria, percussão, Tubular Bells), lançaram ao meu ver o seu mais subestimado trabalho. Entradas e Bandeiras é um irmão mais novo de seu antecessor, com ótimos rocks, vide “Corista de Rock”, com mais um maravilhoso solo de Carlini, “Superstafa” (e dê-lhe solos ácidos de Carlini) e o riff pesado de “Posso Contar Comigo”, com mais uma grande letra feminista de Rita. Adoro o hardão de “Lady Babel”, faixa bastante intrincada e surpreendente para quem conhece Rita apenas por seus sucessos ao lado de Roberto de Carvalho, e a paulada “Departamento de Criação”, com Rita gritando que vai “dar trabalho à crítica” e um peso descomunal que alegrará os metaleiros de plantão, além de um mogg fantástico. Fãs de Raul Seixas irão reconhecer no country-rock de “Bruxa Amarela” as origens do que se tornou “Check-Up” anos depois. Claro, a canção é mais uma parceria de Rita com o guru Paulo Coelho, que depois adaptou a letra para Raulzito gravar. Outra faixa que os fãs mais ávidos irão reconhecer uma certa “semelhança” com algo que já se ouviu é “Com a Boca No Mundo (Tico-Tico)”, com seus acordes de C, G, A saídos de um Velvet Underground “Sweet Jane”, mas com uma virada embalada muito sensual e impactante pelo peso do funkzão/disco que a Tutti-Frutti entrega, bem como o tesão da voz de Rita. Fecha o disco a experimental “Troca-Toca”, com vocalizações e um embalo desconcertantes. E ainda, temos até uma nova “Ovelha Negra”, através da linda “Coisas da Vida”, uma das faixas mais motivacionais da carreira de Rita. Um álbum muito bom, que conseguiu encobrir os problemas internos que já rolavam entre Rita e Carlini.


Refestança [1977] (com Gilberto Gil)

A turnê de Rita e Tuffi Frutti com Gil e sua Refavela entre outubro e novembro de 1977 culminou no excelente ao vivo Refestança, que marca a estreia de Roberto “Zezé” de Carvalho como guitarra base e teclados, em uma Tutti Frutti contando ainda com Carlini, Mariucci, Sérgio Della Monica (bateria), Wilson Pinto “Willi” (vocais) e Naila “Scorpio” Mello (percussão). O contexto da turnê surgiu um ano antes, quando a imagem de Rita ficou manchada ao ser presa por porte de drogas, assim como o baiano Gil. Então, os dois criaram o projeto para poder reerguer suas carreiras, e assim nasce um álbum espetacular, que fez questão de colocar “É Proibido Fumar” de Roberto Carlos no set list, uma forma de contar o que aconteceu um ano antes, e que conta com os dois grupos no palco. Eles também atacam ao mesmo tempo a revisão de “Get Back” dos Beatles, aqui batizada “De Leve”, o rockzão “Refestança”, com a Refavela trazendo toda sua pimenta percussiva nas costas de Djalma Correia, um dos maiores nomes da percussão mundial, mas Naila não ficando nada atrás. A Tutti Frutti se apresenta junto de Rita e Gil em canções do segundo, dando bons ares roqueiros para “Back in Bahia”, “Giló” e “Arrombou a Festa”. Já a Refavela, composta além de Djalma por Moacir Albuquerque (Baixo), Pedrinho Santana (Guitarra), Milciades Teixeira (Teclados), Carlos Alberto Chalegre (Bateria) e Lúcia Turnbull (vocais) abrilhanta a linda introdução de “Odara” (Caetano certamente vibrou ao ouvir sua canção na voz de Gil), “Eu Só Quero Um Xodó”, interpreta a “Ovelha Negra” da “comadre”, com grande tempero progressivo, e a melhor canção do álbum, o resgate de “Domingo No Parque”, fazendo Rita novamente os backing vocals deste clássico que revelou os Mutantes para o Brasil lá no Festival da Canção da TV Record de 1967, e que aqui ganhou um final apoteótico. Um ótimo disco inclusive em termos de qualidade na produção.

Willy, Marcucci, Carlini, Rita, Roberto, Naila Scorpio e Della Monica

Babilônia [1978]

Gravado entre muitas brigas de Rita e Carlini, o derradeiro disco de estúdio de Rita Lee com a Tutti Frutti é mais um álbum recheado de ótimos rocks, e abre com o grande sucesso, “Miss Brasil 2000”, para sacolejar a casa sem piedade, e com Roberto brilhando no piano. Outros grandes sucessos ficaram e “Eu E Meu Gato”, que entrou para a trilha da novela O Pulo do Gato, e é um bom rock comandado pelos teclados de Roberto, além das participações mais que especiais de Guto Graça Mello (tumba), Lincoln Olivetti (sintetizadores) e os gatos de Rita (Ziggy Stardust e Martha My Dear) e do cachorro Anibal. Outra para sacolejar é “Agora É Moda”, que me lembra muito o que o Som Nosso de Cada Dia faz no lado A do álbum Som Nosso, sendo uma faixa muito dançante, e com uma letra muito atual, principalmente para os brasileiros que acreditam no desgoverno, com frases como “pegar alguém pulando o muro”, “inquisição da idade média”, “Culpar o mercado estrangeiro”, “economizar a gasolina”, “tentar salvar a natureza” entre outros. Não à toa, acho essa a melhor faixa do disco. Falando em Som Nosso, Manito da o ar da graça mais uma vez, agora no rockzão de “Jardins da Babilônia”, mais um grande sucesso que lembra bastante “Esse Tal Roque Enrow”. Importante lembrar, que a formação da Tutti Frutti é a mesma de Refestança. “Modinha” é uma parente próxima de “Vida de Cachorro” (Mutantes) e mais uma fantástica letra de Rita, acompanhada apenas pelos violões dela e Carlini, bem como uma tímida percussão feita por Naila e Sergio, e com Rita também na flauta doce. Há única faixa aquém, “O Futuro Me Absolve”, apesar da boa letra, e com a participação de Chico Batera no gongo chinês. As brigas eram tantas que somente uma canção da dupla está em Babilônia, o ótimo rock de “Sem Cerimônia”. Carlini também compôs sozinho o rockaço “Que Loucura”, um parente próximo de “Agora Só Falta Você”. Aqui está também a primeira parceria de Rita e Roberto, no caso a balada rocker “Disco Voador”. Considero este o mais fraco dos álbuns aqui apresentados, mas mesmo assim, muito melhor do que muito do que Rita fez posteriormente, principalmente durante os anos 90 e 2000.

As brigas entre Rita e Carlini ganharam força (as baixarias e confusões deixo para o rapaz do “ok! ok!”), assim como o relacionamento entre Rita e Roberto se consolidou, e então, a cantora tocou sua carreira ao lado do marido, lançando outros clássicos atemporais para a música nacional, e deixando para a história esses cinco álbuns com a Tutti Frutti que foram os responsáveis por hoje ela ser considerada nada mais nada menos do que a Rainha do Rock Nacional.


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